Cartas

Carta ao meu filho

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Carta ao meu filho

Você nasce em 2021. Cada dia de teu crescimento em meu ventre é uma incógnita ao senhor do tempo. Por que vens tão depressa em momento inoportuno? Por que me apertas os órgãos debaixo desta camada de pele, gordura e sangue? Por que tua massa me preenche a barriga e me arredonda dos pés às maçãs do rosto?

Enquanto tento dormir, ouço teus movimentos em minha casa d’água. Nas madrugadas insones, elucubro teu futuro imediato e o que vem depois. Ouço o presságio de teu choro tomando vacinas que te pouparão a morte. Enquanto você lamenta a dor, conto baixinho em teus ouvidos sobre teus tios-avôs que faleceram de sarampo. Digo​ meu filho, a dor menor evita que cheguemos tão rápidos à próxima vida. ​ Finjo, nesse instante, que você me entende. Beijo tua testa marrom. Teus olhos recém-nascidos se fecham, cansados de simplesmente existir.

Te levo todo vestido de branco à boca de um riacho. Te consagro às águas, cantando docemente nalguma língua de conhecimento das gerações anteriores às nossas. Voltamos para casa de sorrisos abertos, sem máscaras para disfarçar nossa felicidade inaugural. Quando chegamos em casa, a família de tua outra mãe nos recebe. Todos nos abraçamos, sem medo, como se o ano da peste nunca tivesse existido. Ninguém é homofóbico nem maldoso. Você é um feliz filho de duas mães. As duas te amamentam. E todos nos respeitam, nos aceitam e nos amam como somos.

Teu enxoval está pronto. Peças azuis, vermelhas, amarelas e cor de rosa. Roupa de bebê. Tem até blusinha do Corinthians. Sandália de couro de jegue, do nosso Nordeste vivo. Manta de tricô. Tua avó bordou um casaco listrado de vermelho e preto, a bandeira de exu. No teu quarto tem raminho de arruda em cima do batente, sal grosso detrás da porta. Um lírio branco no encontro da janela. Gavetas levemente perfumadas com alfazema abençoada. Há livros na prateleira, desde pop-up até grandes nomes da literatura. Um livro meu, outro zine de tua mãe. Um terço e um crucifixo que herdamos de dona Odete ficam no cabideiro.

Consegui evitar o ano de eleição para que não fosses recebido num país dividido. Em contraponto, não conhecerás a pipoca da Copa do Mundo tão cedo. Nathália e Fran serão tuas madrinhas. Guilherme, teu único padrinho. Nossa casa será rodeada de plantas, você sabe, elas fazem parte de tudo que há em mim. São meu próprio povoado.

Já vejo teus primeiros passos, tua primeira palavra, toco um disco em que tua gargalhada à toa ocupa todas as faixas. Te levo para a escola, no primeiro dia de aula; à formatura da primeira graduação. Serás artista plástico, como um dia eu quisera ser. Puxarás o dom de tua outra mãe que, diferentemente de mim, é livre como um passarinho. Ela molda com os dedos peças de cerâmica mágica; tu, além disso. Meu filho, você faz tudo o que deseja fazer. No teu mundo não há limites para quem nasce preto marrom. A polícia não te caça qual presa, a sociedade não te odeia, os espaços não te excluem. Ninguém te chama negro pois o branco simplesmente aceitou a própria brancura.

Vislumbro meus cabelos grisalhos nascendo por toda a cabeça quando tu chega em casa contando, afoito, que está esperando o primeiro filho. Choro imediatamente, pois não sei se meu coração suportará amar a alguém mais do que amo você. Teu bebê nasce e eu morro por sentir o coração latejar fora do peito. Teu pezinho chuta a minha costela e me faz retornar os pés ao chão. O ano está acabando e os planos de espera também. Breve você estará em meus braços, tão vulnerável, e o mundo continua da mesma maneira.

Queria poder te oferecer um país melhor para ser teu berço. Queria resolver os problemas de gestão pública para diminuir a ansiedade e te segurar no útero até as 42 semanas. Importante é vir com saúde, me lembra a tua avó, com a última ultrassom na mão. Você tem tamanho e peso. Em todas as fotos, sai chupando o dedo. Tua bochecha direita parece formar uma covinha, como a minha. Todo banho que tomo, desenho teu nome no vidro embaçado do box. Risco o calendário dia após dia, celebrando a tua chegada.

Você nasce em 2021. Signo de Capricórnio. Mal posso esperar para sentir teu cheiro, João José, meu filho.


Zainne Lima da Silva (1994) é filha de Nara-Bahia e José-Pernambuco. Moradora de Taboão da Serra, zona metropolitana de São Paulo. Bacharela e Licencianda em Letras pela FFLCH-USP, é arte-educadora, professora do Português, poeta e prosadora. Autora de Pequenas ficções de memória (Patuá, 2018) e da publicação virtual independente Canções para desacordar os homens (2020), entre outras publicações coletivas e digitais.

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