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Cristiano Fretta: Zona norte e aviação brasileira: revoluções, glórias e falências

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Cristiano Fretta: Zona norte e aviação brasileira: revoluções, glórias e falências

Entre as inúmeras crises financeiras produzidas pela pandemia da covid-19, sem dúvida a que incide sobre o setor aéreo é uma das mais graves. A queda súbita do faturamento e o efeito cascata que a paralisação da indústria da aviação civil impõe a inúmeras outras atividades assombra milhares de brasileiros que padecem sobre a angústia da falta de perspectiva neste setor, pelo menos a médio prazo. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, Azul, Gol e Latam estão operando com um volume de apenas 10% dos voos regulares de antes da pandemia.

Imagens de aeronaves paradas lotando imensas áreas de aeroportos ao redor do mundo vêm circulando nas redes sociais e representam, para além da evidente crise, uma mórbida pausa na concretização do antigo sonho de o ser humano voar. A relação metafórica entre o voo e a liberdade é óbvia e, ao mesmo tempo, profunda.

Não se consegue pensar sobre aviação brasileira sem que se evoque a Varig, a saudosa companhia aérea que tantas lembranças de “outros tempos” produz no nosso imaginário. Entre a sua fundação e a sua extinção total transcorreram-se oito décadas, um período de duração invejável. O desenvolvimento desta marca está intimamente ligado a Porto Alegre, mais especificamente à zona norte da cidade, local que ainda guarda muitas recordações desta que já foi uma das maiores companhias aéreas de todo o planeta. 

O auge da empresa foi entre as décadas de 60 e 80, momento em que desfrutou de imenso prestígio não só nacional, mas também internacional. Em 1979, a revista “Air Transport World” premiou o serviço de bordo da companhia com o honroso título de “o melhor do mundo”.  A Varig chegou a operar mais de uma centena de destinos nacionais e atender mais de 70 países, sendo a única companhia aérea brasileira a possuir rotas para todos os continentes. Era uma época em que andar de avião era muito mais do que um meio rápido de locomoção, mas sobretudo glamour e ostentação. Os preços das passagens aéreas eram em média três vezes o valor de hoje em dia, sendo a aviação, portanto, restrita a uma camada ainda menor de brasileiros do que atualmente. 

Fundada em 1927 pelo alemão Otto Ernest Meyer e contando com investimento de vários magnatas teutobrasileiros, a companhia, durante os seus 5 primeiros anos de existência, operou apenas hidroaviões. O modelo Dornier Do J, apelidado de “Atlântico”, foi o responsável pela primeira rota, ligando Porto Alegre a Rio Grande. Logo em seguida outra aeronave entrou em cena. Tratava-se do Dornier Komet, que passou a atender a região sul e sudeste do Brasil. O local utilizado para as operações em Porto Alegre era o próprio rio Guaíba, especificamente na Ilha Grande dos Marinheiros. Foi apenas em 1932 que a empresa começou a operar aeronaves com trem de pouso, com os modelos Junkers A-50 Junior e Junkers F.13. Dessa forma, havia a necessidade óbvia de um outro espaço para as operações.

O lugar em que a empresa desenvolveria suas atividades em terra era uma imensa área alagadiça na extrema zona norte da cidade, situada entre o fim da rua Sertório e o rio Gravataí, ao final do traçado da popularmente conhecida “rua dos Cachorros” (atual Augusto Severo). A região toda era conhecida como Várzea do Gravataí e o local de desenvolvimento do futuro Aeroporto Porto Alegre era uma propriedade municipal onde havia plantações de arroz durante o século XIX. 

Em 1892, o então presidente da província Fernando Abott ali criou o 1º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar. Um ano mais tarde, Júlio de Castilhos – que havia retornado ao cargo de Presidente da província –  deu o comando do local ao tenente-coronel Fabrício Baptista de Oliveira Pillar, com o objetivo de fortalecer as defesas na entrada da capital. 

Foto em preto e branco de homem pousando para foto

Descrição gerada automaticamente
Fabrício Baptista de Oliveira Pillar, morto em setembro de 1894 em combate no Capão das Laranjeiras, durante a Revolução Federalista Fonte: museu da Brigada

Alguns anos depois, o mesmo local passou a ser utilizado como Posto de Veterinária da Brigada Militar, tendo em vista o imenso potreiro existente ao ar livre. Foi comum que, durante a década de 10, a área adjacente fosse utilizada para corridas de cavalos pela população porto-alegrense, em uma versão menos glamourosa que o turfe inglês. Os limites de urbanização da cidade iam exatamente até o local, sendo a “rua dos Cachorros” já relativamente povoada desde a década de 1880, ligando a estrada do Passo da Areia (atual Assis Brasil e Benjamin) à imensa área da Várzea do Gravataí. 

1º Regimento de Cavalaria em foto de 1908. Esquina das atuais Avenida Sertório e Rua Augusto Severo Fonte: arquivo pessoal. 

Em 1915, o comandante-geral da BM, coronel Affonso Emílio Massot, propôs a Borges de Medeiros, então Presidente do estado, a criação de uma escola de aviação. No entanto, o projeto não recebeu apoio de Borges, alegando que esta era uma competência federal. Oito anos mais tarde, Massot reapresentou o projeto, tendo como argumento a necessidade de se enfrentar o movimento revolucionário de Assis Brasil. Dessa vez, o projeto foi aceito. O local ao lado do Posto de Veterinária era ideal, pois era plano e próximo a instalações já pertencentes à Brigada. Então, foi criado em 1923 o Serviço de Aviação da Brigada. Para tanto, a área foi drenada, aterrada e foram construídos dois galpões que serviram como oficinas e hangares. Além disso, demarcou-se uma pista de 600 metros com madeira caiada. Duas aeronaves francesas, modelo Breguets 14, foram compradas. Para operá-las, foram contratados o ex-sargento-aviador do Exército Noêmio Ferraz como piloto e Osório Oliveira Antunes como copiloto. Em maio do mesmo ano ocorreram os primeiros voos de identificação sobre Porto Alegre. Nos próximos meses, os voos tinham como objetivo reconhecer e assustar as tropas dos revolucionários. No entanto, em agosto, após a volta de uma missão de reconhecimento, o avião incendiou-se subitamente no ar. Milagrosamente, Noêmio se salvou após ser arremessado para fora da aeronave. Já seu companheiro Osório morreu carbonizado junto aos destroços do avião. Noêmio continuou voando com a outra aeronave, que também começou a apresentar problemas. Em 1924 o serviço foi oficialmente extinto. 

Noêmio Ferraz e Osório Fonte: museu da brigada.

Esta não havia sido, no entanto, a primeira vez que um avião havia voado os céus de Porto Alegre. Em 1911, o italiano Bartolomeu Cattaneo chegou à capital com sua aeronave Blériot a bordo de um vapor, sendo recebido por inúmeras autoridades. O local escolhido como pista foi o antigo prado do Menino Deus. Uma verdadeira multidão se aglomerou para ver a aeronave, que fez várias evoluções sobre a cidade, levando público ao delírio. 

Cattaneo no Menino Deus Fonte: arquivo pessoal.

Em 1920, pela primeira vez o bairro São João ouviu o barulho de uma aeronave. Tratava-se do paulista Eduardo Pacheco Chaves, que estava fazendo a inédita rota entre Rio de Janeiro e Buenos Aires. Edu Chaves, como era conhecido, era filho da elite cafeicultora paulista. Estudou aviação na França e lá fez amizade com Santos Dumont. Além disso, foi o fundador da primeira escola de aviação do Brasil. Seu pouso aconteceu nas adjacências do Posto de Veterinária da Brigada e fez com que praticamente todo o bairro São João corresse até a Várzea do Gravataí para ver o aparelho, em um dia de extremo calor. 

Em 1924, a área do Serviço de Aviação da Brigada, por meio de contrato, passou a ser propriedade de Orestes Dionísio Barroni. Os galpões e as aeronaves avariadas permaneceram no local, que passou a ser conhecido como Aeródromo São João, que, no entanto, nunca chegou a se desenvolver como um polo da aviação civil. Como destaque, em 1926 Antônio Gonçalves Rei fez inúmeras manobras sobre a zona norte de Porto Alegre. 

A Varig, então, em 1933, começou a utilizar a área para suas operações com os novos aviões com trem de pouso. Os antigos galpões foram utilizados durante 5 anos. Em 1938 o aeroporto foi federalizado e inaugurou-se um novo terminal de passageiros. Terrenos ao redor foram desapropriados para a expansão da área. Em 1940, o Aeródromo de São João passou a se chamar Aeroporto de Porto Alegre. 

PORTO ALEGRE - Uma História Fotográfica
Instalações do Aeroporto de São João na década de 30. Acervo: Ronaldo Bastos

Durante os anos 30 e 40, o movimento de passageiros cresceu de forma exponencial. Em 1948, operaram 9222 aeronaves, transportando 138.722 passageiros e 4 mil toneladas de carga e correio. Em breve, as instalações mostraram-se insuficientes e as aglomerações ficaram constantes. Além disso, a pista era pequena, o que inviabilizava operações de aeronaves maiores. 

Em 1953, um novíssimo terminal mais ao norte era inaugurado, juntamente com o alargamento e repavimentação da pista. Houve, então, outra mudança de nome, e o Aeroporto de Porto Alegre passou a se chamar Aeroporto Internacional Salgado Filho, uma homenagem a Joaquim Pedro Salgado Filho, importante magistrado e político brasileiro. Atualmente corresponde ao Terminal 2 de operações do aeroporto. Também nos anos 50 a Varig inaugurou imensos hangares que ainda hoje estão de pé. Com a mudança de local do terminal de passageiros, o movimento na área do ficou restrita à mecânica da Varig e à Fundação Rubem Berta. Com o passar dos anos, toda a paisagem do antigo terminal foi mudando. Hoje ele é “engolido” por inúmeros outros prédios que foram construídos ao redor. 

O "novo" aeroporto | GaúchaZH
Novo terminal de passageiros recém inaugurado (1953) Fonte: fototeca Sioma Breitman

Há poucos anos atrás, ao lado do Fundação, ainda existia uma linda praça, criada pela Varig. Tratava-se de um espaço arborizado, com um pequeno lago artificial cheio de tartarugas e charmosos bancos. Em geral, era frequentado por funcionários do local, mas muitas eram as famílias do bairro São João que até ali caminhavam aos domingos. No início dos anos 90, havia inúmeros eventos de Natal no local, como apresentações de coral, presépio vivo e, até mesmo, um curioso Papai Noel inflável gigante. 

Em 2007, após uma imensa agonia financeira, a Varig foi comprada pela Gol, deixando oficialmente de existir. Símbolo da decadência e da falência, a praça está totalmente murada. A área em que funcionou o Aeródromo São João pertenceu à TAP Manutenção & Engenharia até 2015, ano em que foi comprada pela chinesa Flightparts. Hoje o local não passa de uma memória dos tempos áureos da aviação gaúcha e brasileira.  

Em tempos de pandemia, a memorialística exerce um papel bem maior do que a simples recordação de um tempo que já se foi; ela também é a forma de resistência a um vírus que nos fez, pelo menos em parte, encolher a indústria aeronáutica de todo planeta. Sem dúvida, a antiga Várzea do Gravataí foi palco de importantes inovações que projetaram a aviação gaúcha nos céus de todo o mundo. 

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