Crônica

A calça de veludo azul e a menina que dançava nas roupas

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A calça de veludo azul e a menina que dançava nas roupas

Ela tinha sete anos… sete anos e nunca tinha comprado uma roupa de loja. Iara conhecia dois tipos de roupa: as que sua mãe fazia e as que herdava de outras crianças, normalmente dos primos mais velhos. 

As habilidades de sua mãe como costureira eram limitadas… o modelo era sempre o mesmo. Calças retas e soltas, com elástico na cintura e barras largas e blusas franzidas de corte quadrado, com alças de amarrar. Duravam muito, pois se Iara crescia ou engordava um pouco, sempre tinha barras para baixar, pregas para soltar, alças para alongar e elásticos para afrouxar. Se o modelo era sempre igual, o mesmo não podia ser dito das estampas. Eram flores, bichinhos, listrinhas, xadrezes, “poás” e tudo o que a mãe encontrava no bazar do seu Ivo, na esquina de casa. Já as roupas herdadas eram saias, vestidos, calças e todo o tipo de shorts, que a mãe dava umas ajustadas e ia soltando conforme a necessidade. 

Nessas roupas, o corpo franzino de Iara encontrava espaço para dançar a dança de uma infância simples, correr, subir na goiabeira, pular corda, cavar o jardim, correr atrás das galinhas no quintal e percorrer aos saltos os degraus de sua imaginação.

As roupas feitas por sua mãe eram usadas até gastar, faziam parte da vida de Iara. As roupas herdadas, essas não… vinham de fora, carregadas de histórias e aventuras de outras crianças, e Iara sempre esperava ansiosamente que algum novo lote chegasse.

Pessoas aventureiras tinham cicatrizes, e suas roupas tinham remendos; pessoas experientes ficavam grisalhas, e suas roupas desbotavam. Para Iara elas continham vidas que ela não vivera, mas que intuía, adivinhava. Elas contavam histórias, e Iara ouvia atentamente. 

“Ah… esse remendo no joelho tem cara de tombo de bicicleta, uma bicicleta nova e reluzente… vrummmmmmmmmm, lá vou eu voando na calça ciclista”, ou “Essa manchinha marrom aqui nessa blusinha veio de uma enorme festa de aniversário, mancha de bolo de chocolate, hummmmmmmmmmmmmmmm que delícia de bolo deve ter sido”.

Assim Iara ia vivendo as histórias contadas pelas suas roupas herdadas, que sobravam no corpo magro e pequeno da magra e pequena sonhadora. 

Até que um dia o pai chegou do trabalho com ares de mistério e chamou Iara na cozinha. A mãe torcia as mãos e olhava agitada para um pacote embrulhado em papel de presente que o pai entregou a Iara dizendo: “Abre, é pra ti! Já está na hora de te dar uma roupa nova de loja!” 

Iara abriu o pacote, curiosa, e deu de cara com uma calça de veludo azul celeste… arregalou os olhos e a boca e seu coração só não saiu do corpo porque não conseguiu decidir por onde, se pelos olhos ou pela boca. 

A calça, por sua vez, encarou Iara sem esboçar qualquer reação. Iara acariciou o tecido e pensou como era parecido com o pelo de um cachorro vira-lata, curto e meio áspero. Mas sem o calor do cachorro. Achou a calça meio fria, pouco amistosa.

A mãe esfregou as mãos e num instante Iara já estava dentro da nova roupa, mas no mesmo instante também já não era Iara. Era alguém preso numa coisa apertada e rígida… aquela calça dominava Iara, prendia seus movimentos e parecia decidida a não ceder.

Os pais diziam “vamos, dá uma voltinha, deixa a gente ver como ficou”, mas a menina que valsava nas roupas não conseguia se mexer. Viu que os pais estavam confusos e respirou fundo, tentou fazer contato com a calça, ouvir algo que ela tivesse para contar. Mas aquela calça não dizia nada, não sabia nada, não tinha vivido nada.

De repente, num iluminamento que de espanto passou a terror, Iara percebeu que iria ter que ensinar tudo àquela calça jamais tocada por outra criança. Teria que ensinar a andar de balanço e a pular sapata, a entrar na corda girando sem tropeçar, a subir em árvore, e quase ficou animada. Então a mãe disse com ar sério: “Mas essa não é pra você sair por aí como uma louca não, viu? Tem que cuidar para não molhar, não sujar, não rasgar, não manchar … não… não…” 

Iara entendeu que aquela calça jamais seria uma calça aventureira… e a antipatia voltou em forma de lágrimas sentidas. 

Os pais, cada vez mais perplexos, perguntaram a ela o que estava errado, se ela não estava contente com o presente, e ela só conseguiu dizer: “Posso colocar meu short de novo?” 

Seu rosto assustado e o corpo rígido deixavam claro que Iara e a calça eram de mundos diferentes, e os pais, em sua sensibilidade simples, apenas balançaram a cabeça, e lá estava Iara de novo em seu shortinho molinho e gostoso. Ela deu um pulo, esticou as pernas, rodopiou e abriu para os pais seu melhor sorriso: “Agora eu posso ir me molhar, me sujar, e talvez até rasgar um tantinho assim este velho guerreiro?” As mãos segurando as pernas do short com energia…

Os pais suspiraram e disseram juntos: “vai, Iara, vai… vai brincar”. Ela saiu correndo na mesma hora, provocando um vento que a levantava do chão em sua imaginação, e ela, pulando então sobre nuvens, o corpo todo solto, ganhou o mundo em que ela se sentia livre.

Ela nunca mais viu a calça de veludo azul, nunca mais falaram no assunto, e Iara, daquela vez, escapou e driblou o passar do tempo, essa peça de roupa justa que nos obriga a andar e não mais dançar, fazendo o menor barulho possível, sem bagunça, sem aventura e sem manchas de bolo de chocolate.


Inajara Pereira, ou simplesmente Ina, é gaúcha de Porto Alegre, onde mora com o marido, os dois filhos e três cachorros. Costuma dizer que trabalha por necessidade, estuda por vocação e escreve por amor. Estudou Letras na UFRGS, onde agora, aos 53 anos, está prestes a concluir a faculdade de Direito.

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