Crônica

A teoria da sedução

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A teoria da sedução

Não faltam notícias sobre abusos contra mulheres e meninas. 

Um tio engravida a sobrinha de nove anos, um atleta ídolo de torcida estupra uma moça desacordada, uma jovem é humilhada num tribunal por autoridades judiciais que deveriam estar ali para protegê-la, e tantas e tantas outras histórias igualmente cruéis, injustas e dolorosas que invadem nossa casa através da tela da TV, das páginas dos jornais, pelas ondas do rádio, pela internet. 

Como sabemos, estes abusos estão longe de ser uma característica exclusiva de nossos tempos. Pertencem, sim, a todos os momentos da história da humanidade em que o patriarcado deu as cartas e conseguiu de uma maneira ou outra soterrar qualquer rumor sobre acontecimentos dessa ordem. 

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Não faltam notícias sobre abusos contra mulheres e meninas. 

Um tio engravida a sobrinha de nove anos, um atleta ídolo de torcida estupra uma moça desacordada, uma jovem é humilhada num tribunal por autoridades judiciais que deveriam estar ali para protegê-la, e tantas e tantas outras histórias igualmente cruéis, injustas e dolorosas que invadem nossa casa através da tela da TV, das páginas dos jornais, pelas ondas do rádio, pela internet. 

Como sabemos, estes abusos estão longe de ser uma característica exclusiva de nossos tempos. Pertencem, sim, a todos os momentos da história da humanidade em que o patriarcado deu as cartas e conseguiu de uma maneira ou outra soterrar qualquer rumor sobre acontecimentos dessa ordem. 

Pobre da voz atrevida que tivesse a coragem de trazer à berlinda assunto tão espinhoso, o açoite da moral e dos bons costumes se encarregava ligeirinho de dar um basta em tanta ousadia.   

A prova clara dessa capacidade perversa de uma sociedade em rechaçar qualquer tentativa de oposição aos abusos contra mulheres e crianças, temos na biografia de Sigmund Freud, Uma vida para nosso tempo, escrita por Peter Gay, que recomendo e, sem medo de errar, afirmo tratar-se de leitura imperdível.  

Freud, na sua obra A Teoria da Sedução, concluíra, após tratar por longa data dezoito mulheres vítimas de transtornos psíquicos, que seus desequilíbrios teriam sido causados por abusos sexuais, muitos deles sofridos ainda na infância e perpetrados por tios, professores e, na maioria das vezes, pelos próprios pais. 

No dia seguinte à apresentação de A Teoria da Sedução para a elite da sociedade médica de Viena, Freud já sentiu suas consequências nefastas. 

Colegas e amigos deixaram de cumprimentá-lo. 

Mas Freud tinha estofo e coragem para seguir adiante com o trabalho em que acreditava e para o qual dedicou tanto tempo de pesquisa.

Seguiria adiante, sim; nada o deteria a não ser algo mais forte que ele mesmo: a visão da despensa de sua casa vazia, os credores batendo à porta e ele não tendo como pagar as contas. 

Sim, seus pacientes também o haviam abandonado.     

Sigmund Freud, um gênio de nossa época, foi jogado ao ostracismo.  

Consultório vazio e a consciência da obrigação de tirar a família da penúria a que foi levada por culpa de sua teoria.  

E aí vem algo que chama nossa atenção, uma carta de Freud enviada a seu amigo Wilhelm Fliess, datada de 15 de outubro de 1897, onde ele conta sua opção por abandonar A Teoria da sedução e transmutá-la em algo mais palatável ao gosto da moral vigente. 

Caro Wilhelm:

Aqui estou eu de novo desde ontem de manhã, reanimado, bem-disposto, empobrecido e sem trabalho no momento: e, estando novamente instalado, escrevo a você em primeiro lugar…. 

(Peter Gay. Freud: uma vida para nosso tempo. Capítulo 2:  A teoria da formação.  Companhia das Letras, 1989) 

Ora, fosse esta biografia um texto da literatura de ficção, não teríamos dúvida de que o narrador queria mostrar seu herói atravessando  uma fase difícil da vida, tentando superar um período de desânimo e empobrecimento, e que o próximo passo seria encontrar uma saída para se recuperar do erro trágico que havia cometido ao ofender os delicados ouvidos da sociedade da época.   

Refazer sua teoria como quem compõe um poema. Eis a saída do herói. Ele teria que escolher uma impressão, ou efeito, a ser obtido, e o resultado seria melhor apreciado. 

Doutor Freud sai, então, a buscar nos antigos clássicos gregos algo atraente para seu público. E lá encontra o que todos gostavam e de certa forma se reconheciam. 

Desdisse o dito. 

Passou a falar de uma forma mais ao gosto daquela sociedade do século XIX, culta, mas conservadora e hipócrita.  

Compôs uma teoria em que contemplava o mito de uma tragédia lá da Grécia antiga. Bem mais fácil para se fazer entender, ser aceito e respeitado.

Pronto, doutor Freud não iria mais falar em mulheres molestadas, pois este assunto chocava, incomodava, melhor evitar. 

E o narrador encontra, assim, um final feliz para sua história. 

E a fartura retorna à mesa da família Freud.    


  

Maria da Graça Rodrigues nasceu em Uruguaiana (RS). Formou-se em Veterinária em 1978 e cursou a Especialização em Literatura Brasileira pela UFRGS em 2008. Escritora, publicou Helena de Uruguaiana, Dublinense, 2010, segunda edição pela Movimento, 2015; Lua Castelhana, Movimento, 2012; Paraíso Selvagem, Movimento, 2014; 4-3-3 e o porteiro do estádio, Movimento, 2014; A primeira pedra, Movimento, 2016. Participa da de Pampa e Fronteira, editora Viapampa, 2019.

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