Crônica

Autocrítico metalinguístico

Change Size Text
Autocrítico metalinguístico

Amarrotada entre os corpos do ônibus intermunicipal, olho pela janela e vejo o verde, a pixação, a propaganda e o lixo dentro do córrego que transbordou no dia anterior. O córrego sempre transborda. A paisagem é apelativa e me obriga a escrever. A enchente me inclina a também boiar meus próprios descartes. Mas, de pé, com a mochila no chão e os braços presos às barras de ferro que tentam evitar acidentes, é impossível pegar papel e caneta. Ou, na emergência, o celular. Escrevo, ainda assim. Mentalmente. Repito as palavras até que percam a forma, o gosto, a emoção. Assim, elas podem finalmente existir no mundo real. Quando chego em casa, corro atrás da última gota d’água anterior à secura sertaneja que é o texto literário. Despejo as palavras já quase mortas, as ressuscito, uma a uma, até que preencham algum vazio no espaço citadino. Esqueço, no entanto, do bote salva-vidas. De repente, o descarte boiando em meu lítero-córrego sou eu.

[Continua...]

[elementor-template id="36664"]

Amarrotada entre os corpos do ônibus intermunicipal, olho pela janela e vejo o verde, a pixação, a propaganda e o lixo dentro do córrego que transbordou no dia anterior. O córrego sempre transborda. A paisagem é apelativa e me obriga a escrever. A enchente me inclina a também boiar meus próprios descartes. Mas, de pé, com a mochila no chão e os braços presos às barras de ferro que tentam evitar acidentes, é impossível pegar papel e caneta. Ou, na emergência, o celular. Escrevo, ainda assim. Mentalmente. Repito as palavras até que percam a forma, o gosto, a emoção. Assim, elas podem finalmente existir no mundo real. Quando chego em casa, corro atrás da última gota d’água anterior à secura sertaneja que é o texto literário. Despejo as palavras já quase mortas, as ressuscito, uma a uma, até que preencham algum vazio no espaço citadino. Esqueço, no entanto, do bote salva-vidas. De repente, o descarte boiando em meu lítero-córrego sou eu.

Na tentativa de não submergir ao cotidiano trabalhador, entre ônibus, metrôs e caminhadas em calçadas esburacadas, tento prolongar a vida de minha doçura. Parece um eterno nadar contra a corrente isso de manter viva a chama que me impele àquela parte de meu ser que é inteiramente sensível. Sei da cor que carrego na pele, da textura de meus cabelos, da voz infantil e das mãos pequenas e calosas que possuo. Sei que, ainda que eu seja uma tal máquina insistente da escrita, serão poucos os olhos que legitimarão minha literatura. Escrevo em prosa, verso, desprosa, desverso; seus entre-meios; sou boa no que faço, alcanço corações; tenho reconhecimento nas ruas e nos palcos; no entanto. Gritaram-me negra, isso sim, mas jamais gritaram-me escritora, poeta, intelectual… tenho de gritá-lo eu mesma. 

Nunca me ensinaram a vociferar. Já nasci sabendo. O exercício está em descobrir minha própria voz. Descobrir os agudos e graves que alcanço, de quantos decibéis necessito para me fazer ouvida. Saber para quem, por que e quando escrever determinada coisa. Proteger os meus de descarregos. Conhecer a quem destino minha raiva. Meu ódio. Minha repulsa. Minha mágoa. Revelar o eterno devir de uma história cujo passado se desconhece porque europeicamente pensada menor. Lembrar de minhas trisa, bisa, avó. Lembrar de meus mortos. De meus vivos. De meus quase-defuntos e recém-nascidos. Compreender que há a necessidade pelo grito, e mais ainda pela escuta. Aceitar que há demasiada responsabilidade em cada escorregada de minha pena sobre a folha. A escrita é a chance mais bonita de registrar a passagem de meu cérebro — e de meu coração — pelo mundo. É uma fresta para a eternidade que desejo.

A ferida é por onde entra a luz. Penso em quantas de mim fazem essas mesmas manobras para ter direito à plenitude de suas existências. Em suas mais variadas cores e texturas, mulheres negras, autoras e artistas, falam de literatura ao mesmo tempo em que a sociedade tanto embrutece o ser sustentador do mundo. (Quando só o que queremos, na verdade, é sustentar os nossos sonhos, à noite, nos momentos em que nossas cabeças acham algum descanso.) Não é correto o tanto que se exige da mulher negra enquanto é tão desvalorizado o seu trabalho. O mercado editorial é um nicho que reflete a estrutura de nossa sociedade e seus absurdos. Seu racismo imbuído. Seu machismo, sua homo, bi e transfobia. A literatura talvez não seja meu lugar, penso.

Tão logo penso, já constato que, sem a literatura, não existo. Por isso, insisto numa esperança quiçá vã de ser quem sou e fazer o mundo me engolir. Não quero que o mundo me aceite, pois isso seria ceder a acordos com uma hegemonia que me causa calafrios. Quero, ao contrário, trazer à luz uma forma outra de estar neste planeta. Ser o que sou, como sou, quando sou. Se eu quiser ser. Isso, consequentemente, me leva a esculpir palavras e palavras em murais, capas, páginas e dermes. Eu sou negra autora de negra escrita. Eu escrevo, publico e existo no sentido mais absoluto e digno da existência. 

Dentre as minhas também houve quem abrisse um caminho de mata fechada, com peixeira de baiano, para que eu tivesse a chance mínima de ocupar meu espaço (que me é por direito desde os tempos da diáspora). Imagino seus sofrimentos, os murros nas pontas das facas, as supressões das subjetividades. E, ao imaginar, faço do sofrimento perpetuado a matéria que desencadeia estrofes e parágrafos. Exatamente como faço aqui, agora, ao dizer a você, leitor(a), que, atrás e diante de mim, há avós analfabetas, fortíssimas, que vieram dos sertões e águas de seus estados nordestinos comendo o farelo do pão que os senhores patrões amassavam. Que há, dentro de mim, uma língua viva, em chamas, que se reinventa a cada dia em busca de yorubá, igbo, umbundo, quimbundo, crioulo, swahili. Em busca de tupi, vez ou outra. Em busca de uma identidade negro-brasileira que seja perceptível em minha obra. 

São os meus anseios perseguindo incômodos que me fazem ser poeta-escritora. É por Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Benedita Lopes que escrevo. Por MC Soffia, MC Elis, por minhas priminhas e alunas negras que escrevo. Em prol da existência de Tayós e Obaxis. É por afro-imaginários que escrevo. Pelas cotas nas universidades e nos concursos públicos. Pelos direitos trabalhistas. Pelo acesso à saúde, comida, moradia e educação. Pelo direito à cultura. São nossos direitos comprados com sangue.

Escrevo não porque me falta, e sim por transbordar. Eu fui o rio que a cidade chamou de córrego, mas que tratou de suprir peixes e plantas. Hoje, eu sou a água pura, transparente, que sozinha se renovou: quem quiser de mim, sente-se e alimente-se: a minha palavra é gratuita. Toda a minha alma se volta à vocação de por no tangível as vozes de meu povo. Eu repito o sim.


Zainne Lima da Silva (1994) é filha de Nara-Bahia e José-Pernambuco. Moradora de Taboão da Serra, zona metropolitana de São Paulo. Bacharela e Licencianda em Letras pela FFLCH-USP, é arte-educadora, professora do Português, poeta e prosadora. Autora de Pequenas ficções de memória (Patuá, 2018) e da publicação virtual independente Canções para desacordar os homens (2020), entre outras publicações coletivas e digitais.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.