Crônica

Bexiga de cronista

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Bexiga de cronista

A editora foi bem clara, gostaram de minhas crônicas e até topam publicar um conto meu, mas só um. Livro não vai rolar, nem sonhando, que texto curto não vende. Mas não tem por que ficar tão chateada, se no final das contas eles querem publicar sim um livro meu, só tem de ser um romance.

Ah! O romance. Nenhum escritor se consagrou sem ele – ou quase. O gênero que edifica o leitor e reconhece quem o escreve. O Santo Graal. A visão do futuro. O acontecimento que nunca acaba. O som do silêncio. Que ótima notícia, querem me consagrar como escritora na nova literatura brasileira com esta baita oportunidade de publicarem meu primeiro romance. O sonho realizado.

Só um detalhe bem pequenininho: eu não escrevi romance nenhum.

Mas não há razão para desespero, pois gostaram da minha ideia, da estrutura e de como eu uso a linguagem (nas narrativas curtas). Tudo certo, estou desempregada mesmo. Editora e tempo, minha Nossa Senhora, o que mais eu posso pedir aos céus? Claro, um salário seria o ideal, mas vamos lá, quando o livro estiver vendendo o dinheiro aparece. E outra, a gente nunca fez alguma coisa até fazer pela primeira vez, então é isso. Só preciso escrever. Já sei qual é a história que quero contar e nunca estudei tanto como nestes últimos tempos.

Só preciso escrever.

Sento na frente da tela e escrevo uma crônica de como esta semana foi difícil. Merda.

Levanto, preciso sair. Dou uma volta na orla, olho o tempo, as pessoas. Depois que chove um pouco as cores aparecem num tom límpido. A tarde cai tão generosa que eu me emociono. Caminho até o meu bar de costume. As pessoas de costume me encontram com o sorriso de costume e eu peço pro Marquinhos a cerveja de sempre. Não há lugar no mundo mais propício a ser um lar fora de casa do que um bom bar.

Bebo só uma, pra ficar com a sensação de quase por mais tempo. Volto leve pra casa. Parece que me esvaziei de mim, nem tô pensando nele. Ah! Pensei. Mas tudo bem, não vou me censurar. Pensei, e daí, é assim mesmo, daqui a pouco dispenso e o baile segue. Entro em casa junto com o cheiro da rua. Pego uma garrafa de água na geladeira e me sento de novo. 

Só tenho de escrever.

Conto a história de como às vezes o que a gente mais quer esquecer é justamente o pensamento que fica. Outra crônica. Droga, isso deve ser um vício. Como faço pra deixar de escrever crônica e fazer uma narrativa longa o suficiente pro pessoal da editora acreditar que é um romance? A cadeira roda, me balanço de um lado, voltando pro outro. A cadeira dá a volta na sala.

Me levanto, preciso mijar. Acendo a luz, mania de umas semanas pra cá quando uma barata caiu na minha mão enquanto abria nua o chuveiro pra tomar banho. Barata deve ser mesmo a origem do terrorismo, ninguém morre se cruzar uma barata, mas o constante medo de um possível encontro tem me transformado numa psico-paranóica. Antes de secar a mão balanço a toalha pra ter certeza que nenhuma maldita está escondida à espreita. Terrorismo.

Pronto, me sento meio cansada na frente da tela de novo. Só preciso escrever, faço isso o tempo todo. Mas gastei uma puta energia só pra conseguir mijar, e isso que foi uma vez só. Durante a escrita de um romance quantas mijadas será que um escritor de verdade dá? Será que as mijadas de um dia que o tal romancista não escreveu uma linha contam se ele levar cinco anos pra terminar a obra? Pra ser romancista tem que ter a bexiga resistente?

Bah, tô fudida, já tive pedra nos rins e dia desses descolei uma infecção urinária que só por deus. Lembrei da crise renal de 2008 enquanto bebia o restante da garrafa de água e de repente me deu uma vontade de mijar novamente. Porra, assim não vou terminar nunca essa história, não escrevi nenhum parágrafo completo entre uma mijada e outra, isso só pode ser uma bexiga de cronista mesmo.


Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica e escritora. Vive hoje em Porto Alegre, onde se divide entre crônicas, mestrado em psicologia social, edição da Revista Parêntese e os bares da Cidade Baixa. Lançou seu primeiro título Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e este ano um novo pela Jandaíra.

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