Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai | Crônica

Casa comigo

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Casa comigo Marriage à-la-mode, de William Hogarth. (Crédito: nationalgallery.org.uk)

É, não vai ter jeito. Quando essa pandemia passar, a primeira coisa que vou fazer é casar de novo. Festa na praia, todo mundo vacinado e bêbado. Loucura na certa. Eu estava na dúvida entre fazer uma tatuagem nas costas, uma suruba em Brasília ou um mês acampando no Mato Grosso. Como gosto de aventura e a carência tem batido forte nas segundas e quintas-feiras, não vou dizer que foi uma escolha fácil, mas é o mais sensato.

Um dos discursos mais usados após o meu divórcio foi o famoso ‘‘você não precisa de homem nenhum’’. Aquela era uma oportunidade de me conhecer melhor. Afinal, só na solidão a verdade se revela. Construímos comunidades de diversas origens dentro da sociedade. Moldamos nossas rotinas ao redor do convívio com o outro. Escola, trabalho, diversões. Toda nossa civilização foi levantada sobre ideias de coletivo, como a família, os amigos, os colegas, as parcerias. Celebramos juntos as uniões. Então, em meio à minha maior confusão, alguém quer me convencer como estar sozinha era uma dádiva. Não fazia sentido.

Nossa essência é efeito de relacionamentos? Quem sou eu na ausência do outro, se nunca existi sozinha? Nunca poderia ter sequer existido. A pandemia abriu um fosso entre meu corpo e o mundo, onde sopra um vento gelado à noite. Não conviver deixa um vácuo estranho. Não soube lidar com ele no início. Ignorei-o. Porém, pouco a pouco aquele espaço que parecia fundo se mostrou apenas largo. Os outros deixaram espaços nalguns comentários durante o filme de quarta-feira, num trincar de copos da sexta ou numa risada de boca cheia de farofa do domingo. Onde o outro se ausenta eu me expando. Percebi o quanto este vácuo era conhecido. Tivemos um encontro em Recife, acho que nunca o mencionei.

Assim que terminei a faculdade saí o mais rápido que pude de São Paulo. Não sabia com certeza onde iria morar, mas tinha de ser no litoral e numa cidade. Nada de vilarejo com duas ruas e uma parada de ônibus. Como me achava pernambucana suficiente, na ânsia de pertencer a algum lugar, a escolha parecia óbvia. Cheguei em Recife com uma mochila e meio dia para arranjar um lugar pra ficar. O que não tenho de juízo, me viro com a sorte. O quartinho que aluguei na Brasília Teimosa foi uma das melhores e piores coisas que já me aconteceram.

Sou do agreste do estado. Recife pra mim era tão clara e distante quanto Pasárgada. Quando alguém do sítio falava que tava indo pra lá, ou era doença ou nunca mais voltava. Imaginação de gente do interior. Mas eu fui adolescente em São Paulo, nada poderia ser pior, certo?! Que inocente. Passei um mês inteiro sem conversar com ninguém. Ia muda pro trabalho. Trocava meia dúzia de palavras com os clientes, que me olhavam como uma perfeita extraterrena. Jantava qualquer gororoba dentro dos meus nove metros quadrados. Nunca mais iria para um lugar onde não conhecia uma viva alma, sem nenhum contato. Nadinha!

O silêncio me matava.

Tentei preencher aquele vácuo com música. Ela me organiza. Aos poucos percebi que ele não era tão profundo, era apenas largo. Além de tudo, um velho conhecido. Eu já havia convivido com aquela sensação antes. Talvez tenha sentido esse vento que sopra a minha vida inteira.

Nascer é uma coisa meio feia. Tem grito, tem dor, tem sangue. Se eu te contar uma história com sangue, dor e grito, duvido você achar alguma beleza nisso. Parto é algo belo assim. Mas, enfim, nasci. O problema maior veio depois. Alguns segundos passados. Os olhos ansiosos atrás das lentes grossas de míope de meu pai escutam com atenção. É menina. E uma brisa fria soprou no corredor da maternidade.

É menina.

Num mundo construído e organizado para a existência em plenitude dos indivíduos que têm um pau e usam-no para penetrar, nunca são penetrados – sabe, aquela velha história, machismo e coisa e tal – atestar que uma criança é uma menina é quase como uma sentença. Crescer e assumir-se mulher vai além, é como pagar uma passagem só de ida para uma ilha assolada pelo vento. Todo dia ao entardecer, quando o sol inclina o mundo no sentido das sombras, os grãos de areia se chocam com tamanha violência que chegam a machucar a superfície da pele. Ser mulher é aguentar este desconforto de pé na praia todo dia.

Morar numa ilha. Ser uma ilha.

Até onde eu sei mulher nenhuma precisa de homem. Assim como também não preciso ter mais de um par de sapatos. E tenho dezessete. Não faço ideia de como vou sair dessa distopia pandêmica. Sei que não morri de infância. Não morri de pobreza. Não morri de imigração. Nem de separação. Se não morrer de COVID me caso, nem que seja contigo.


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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