Crônica

Cidades imaginárias

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Cidades imaginárias

Num dia qualquer, lá pela sexta ou sétima série do Fundamental, meu colega Luís veio me mostrar o país que tinha inventado e batizou, muito a propósito, de Luisândia. Como nessa idade o imitar é o primeiro mandamento e competir o segundo (eu e ele já competíamos pelas melhores notas), logo inventei o meu próprio. Em cadernos dedicados exclusivamente ao assunto, dávamos asas à imaginação para preencher nossos países com idiomas, histórias, geografias (até hoje adoro mapas) e até forças armadas (estávamos no auge da ditadura, em meados dos 1970). O meu caderno infelizmente se perdeu. Provavelmente joguei fora mais tarde, por me envergonhar dessas “coisas de criança”.

Mas hoje lembrei de compartilhar com vocês alguns exemplos de políticas públicas desenvolvidas por prefeituras de diversos (senão a maioria) dos municípios do meu país imaginário.

O prefeito de K. (não vou nomear a cidade nem o prefeito para evitar problemas legais; nem vem ao caso o partido, porque é prática mais ou menos generalizada.), por exemplo, gasta uma pequena fortuna de dinheiro público uma vez por ano, num evento chamado “Festival da Medicina”. Neste dia, uma equipe médica contratada a peso de ouro na capital e até em outros estados aterrissa em K. para realizar uma grande cirurgia. Em geral são cirurgias complicadas, que levam horas ou dias, envolvendo equipes grandes. Como a maioria dos equipamentos e materiais não existem no município, têm de ser trazidos de fora, o que encarece ainda mais o orçamento. A cada ano, o Festival é voltado a uma especialidade, e eventualmente até a vítima, quero dizer, o paciente tem de ser trazido de outro município, pois para garantia do sucesso do evento precisa ser um caso complicado. Ninguém vai querer assistir uma mera cirurgia de catarata, não é?

Alguns cidadãos kaenses reclamam (esse pessoal reclama de tudo) porque, dizem eles, o dinheiro gasto nesse único evento poderia ser investido para melhorar o atendimento à população como um todo, e inclusive pagar melhor os médicos locais e todo o pessoal que trabalha nos postos de saúde e no modesto hospital da cidade. Mas esse mimimi não resiste ao carisma da grande festa, que atrai milhares de pessoas da região, fãs dos cirurgiões que captam milhões de seguidores em seus vídeos com procedimentos incríveis disponíveis nas plataformas digitais. Esse público, como vocês podem imaginar, é muito bem vindo à pequena K, movimentando a rede hoteleira e gastronômica, fazendo a alegria dos motoristas de táxi e Uber, dos camelôs, pipoqueiros, de todo o comércio praticamente. Os beneficiados, naturalmente, aprovam o evento e devem reeleger o atual prefeito, que até cunhou um apelido para seus críticos: “lagostas”. Não sei bem o porquê, mas significa as pessoas que são contra o progresso. Alguns dizem que o que é considerado progresso hoje pode não sê-lo amanhã, mas ninguém tem tempo para ficar discutindo essas minúcias, e a imprensa (que se beneficia das contas de publicidade da prefeitura, portanto está sempre a favor do progresso) já consagrou o apelido.

Já em L, município pouco menor do que K, o evento principal é o Rodeio Internacional da Educação, com mais de vinte anos de sucesso. A prefeita (estou atento à igualdade de gêneros na escolha dos exemplos) em pessoa se envolveu na organização da próxima edição, que, coincidentemente ou não, ocorrerá pouco antes das eleições, em setembro. O principal convidado será um renomado intelectual estrangeiro, que fará uma palestra sobre “As novas tendências da educação para o empreendedorismo e a inovação sem ideologia, num mundo líquido pós-moderno”. Eu particularmente acho o cachê que ele cobra excessivo (e peço desculpas ao leitor por não poder dizer exatamente quanto seria em reais, visto que até o momento inexiste taxa de câmbio oficial entre o Real e a moeda do meu país imaginário, o Delírio, ou D$), mas como ele é famoso e eu criei um país livre, cada um cobra o que quiser e paga quem pode, não é mesmo? Pois a prefeitura de L. pode.

Fato é que também em L. existem os insatisfeitos. Uma minoria, como se sabe. Alegam que há escolas em ruínas, professores com baixos salários, merenda insuficiente para todos… o ramerrão de sempre. Quanto aos salários, ocorre (como há muito tempo já entenderam as pessoas de bom senso) simplesmente que os professores são muitos, por isso não há dinheiro para pagar bem a todos; assim como os vereadores só ganham mais porque são poucos. Também não há garantia de que o ensino iria melhorar apenas aumentando salários ou alimentando melhor os alunos, pensamento simplista que é preciso evitar a todo custo. Falta principalmente gestão, como se sabe. Mas estou me desviando do assunto. O fato é que em L. também, apesar das vozes dissonantes (frequentemente movidas por interesses ideológicos), a população em geral aflui em massa e adora assistir aos rodeios. Evidentemente, como em K, toda a economia sai fortalecida.

Devido ao pouco espaço disponível, vou me limitar aqui a esses dois exemplos singelos, dentre os muitos cases de sucesso que poderia citar, que ajudaram a tornar meu país imaginário uma potência mundial. Num próximo número, se puder contar uma vez mais com a benevolência do editor, vou contar a vocês sobre as notáveis políticas culturais de lá.


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