Crônica

Com suor no rosto

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Com suor no rosto Figueira sobre o túnel da Conceição, 1994. Ilustração: Edgar Vasques

*Diversas imagens de Edgar Vasques homenageiam Porto Alegre na edição 67 da Parêntese. Você pode ver o ensaio gráfico completo aqui. 

Sinto saudade de todos os teatros de Porto Alegre mas, muito especialmente, do Teatro de Câmara Túlio Piva. Um teatro pequeno e acolhedor, o meu preferido, talvez por ter sido o primeiro no qual pus meus pés, aos 17 anos, em 1994, para assistir ao espetáculo “Zoo”, com Zé Adão Barbosa e Renato Del Campão, dirigido pelo saudoso Marcos Barreto e inspirado no texto de Edward Albee. Saudades de descer do bus na João Pessoa e correr pela Luiz Afonso, Lima e Silva e República, até chegar ofegante ao número 575, para entrar antes do terceiro sinal. 

Saudades do pátio arborizado, com o prédio do teatro ao fundo e dos bancos no pátio (eram de madeira ou de concreto?). Saudades dos dois camarins. Saudade do corredor que ligava os camarins à cabine de luz e do espaço atrás do palco. E dos lanches nos camarins, nos quais as guloseimas variavam, mas sempre tinha muita água e maçã. E das flores nos camarins. Também sinto falta dos coquetéis oferecidos pelos grupos no saguão, nos dias de estreia, com muita bebida e conversa animada. E de quando aparecia alguém da produção no alto da escada que levava para a sala de espetáculos, para nos recepcionar. Saudades da cortina fechada e do ruído suave que ela fazia ao se abrir. Saudades da expectativa sobre o que haveria atrás da cortina.

Tenho saudades de ir ao Teatro de Câmara como profe, levando estudantes para assistir à programação do Projeto Novas Caras. E de quando eram as minhas alunas e alunos da Oficina de Teatro da Glória as “novas caras” no palco, vivendo lindamente as histórias de “Flor de Obsessão: fragmentos rodrigueanos”. Saudades das Mostras do Projeto de Descentralização da Cultura, que eram tão grandiosas que nem cabiam nesse único espaço.

Também me dói a saudade da passagem de luz e do ensaio geral. E do acolhimento da equipe técnica do teatro. Saudades de quando era eu no palco, do aquecimento antes da função. Saudades de quando eu era Medeia, Maria, Serrote Preto, UTA, Cinco tempos para a morte (e hoje ela nem precisa de tanto tempo assim). Saudades de quando eu não era eu, ou quando eu era mais eu do que nunca. 

Saudade de ser plateia. Saudades de “Godot”, de “Maldito coração”, do “Fantástico circo de um homem só”, do “Desejo pego pelo rabo”, de “Macbeth” e a fatídica goteira, de “Natalício Cavalo”, “Pé de Pilão”, “Pitocando” e do “Sol Amarillo”. 

Saudade de rir às gargalhadas. Saudade de chorar de emoção. Saudade de levantar para aplaudir de pé e de me curvar diante do aplauso caloroso da plateia. E dos abraços das amigas e amigos, depois da peça, ainda com suor no rosto.

Essa é minha grande nostalgia. Um lugar que guarda tanta memória, tanta história, tanta beleza e hoje perece, diante de nossos olhos, pelo descaso da administração pública, assim como os outros teatros da gerenciados pela prefeitura de Porto Alegre.  É a ausência de um espaço físico, de um edifício teatral, sim. Mas é também a saudade imensa e dolorosa de um tempo em que a cidade achava importante que houvessem teatros.

E então havia.


Dedy Ricardo é mulher, negra, mãe, filha, irmã, esposa, atriz e professora. Iniciou a carreira artística em 1994, por meio do Projeto de Descentralização da Cultura, que levava oficinas de artes para as periferias da cidade de Porto Alegre. Trabalhou como arte-educadora nos abrigos municipais Casa de Acolhimento, Casa de Passagem e Serviço de Acolhimento Noturno, em Porto Alegre. É licenciada em Teatro pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi professora da rede pública municipal de São Leopoldo, onde desenvolveu o projeto Oficina de Teatro e Cultura Negra, no Núcleo de Educação das Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de Educação. Atualmente, trabalha como professora do Departamento de Expressão e Movimento do Colégio de Aplicação da UFRGS, na área de Teatro.  É integrante do Coletivo Atinuké, que estuda o pensamento das mulheres negras. Atua, desde 2000, no grupo Usina do Trabalho do Ator, em Porto Alegre.

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