Crônicas animais: Linhagens multipovoadas
Quando fiz trinta anos ganhei um cavalo. Uma égua. Não sou fazendeira, nem tenho propriedade rural. E, naquele momento, dividia com uma colega de doutorado um apartamento no bairro Santana, em Porto Alegre. Um presente, digamos, bem grande para minhas extensões territoriais. Um baita presente: desde criança eu não tinha um cavalo só meu. Mas foi um presentão, principalmente, porque sempre quis ter alguém a quem chamar de Haragana – quando a burocracia me exigiu a constituição de uma pessoa jurídica, nomeei-a Aragana Arte & Cultura. No caso da égua, o “h” foi sorte minha. Meu pai, quem me presenteou, escolhe os nomes dos cavalos por ordem alfabética, conforme vão nascendo, e a Haragana foi a oitava potranca da linhagem dos cavalos dele.
Lembro exatamente do dia em que nos encontramos pela primeira vez, Haragana e eu. Os cavalos do pai ficavam num fundo de campo da propriedade de uma parenta distante, lá no Chasqueiro, distrito do município de Arroio Grande/RS. Aqui cabe uma discreta curva narrativa. A parenta, Marília Silveira, mais conhecida como Chatinha, foi a primeira protetora de animais de que tenho lembrança. Na época esse termo não era tão usual, mas a identifico assim porque a área da frente da casa dela, na cidade, vivia cheia de cachorros de rua, que iam até ali para comer, beber água e dormir. A Chatinha dividia opiniões nos causos da família, por seu modo peculiar de ser estancieira. Alguns comentavam com certa jocosidade o fato de ela não gostar de vender o gado de seus rebanhos e de muitos dos bichos de criação (vacas, ovelhas) terem nomes próprios e morrerem de velhos. Chegava a operar uma vaca cinco vezes, para a cura de um câncer, o que era impensável para qualquer criador lucrativo, ou que pelo menos não quisesse prejuízo: cirurgia, só a primeira, e só se fosse um animal de muito valor no mercado – as saídas mais ordinárias eram sacrifício ou salame. Para mim, a Chatinha era aquela exceção que nos faz conhecer a regra. E, por isso, não havia lugar melhor do que os domínios dela para a minha égua crescer. Não tive muito contato com Marília, raramente nossos times de futsal se enfrentavam. Quando isso acontecia, o meu sempre perdia de goleada.
[Continua...]