Crônica | Ensaio

Da nação ou danação?!

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Da nação ou danação?!

Já que é da hora discutir autoria de papéis avulsos na pátina do tempo, arqueologicamente salvos em forma digital de onde as traças já os teriam decompostos não fosse a tecnologia, como no caso da alegada página recolhida e inominada do Bruxo do Cosme Velho sobre Dom Pedro II1, colocada em evidência por pesquisa acadêmica da historiadora catarinense Cristiane Garcia Teixeira, para facilitar a vida dos futuramente milhões de meus leitores, caso eu venha um dia a escrever uma obra significativa em espanhol ou francês (ou, vá lá, em inglês), simplifico desde já a empreitada.

Para isso, retrato-me agora aos meus talvez cinco leitores deste dezembro pandêmico de 2020, utilizando justamente um dos recursos estilísticos e/ou narrativos que permitiram a aproximação entre o texto em tela e os outros assinados por Machado, a técnica do negaceio, marca reconhecida de suas crônicas. De antemão, afirmo que não vou falar de política, que os tempos não estão para isso, a serviço dos inquisidores e negacionistas de plantão.

Proponho uma ligeira crítica cinematográfica do filme recentemente lançado no streaming, Enola Holmes2, uma narrativa de aventuras e de mistério em que a protagonista, irmã de Sherlock Holmes, passa por muitas peripécias em busca da mãe, a narradora rompendo a quarta parede para nos envolver no seu processo de amadurecimento e emancipação, filha que é de suposta suffragette, numa época em que o machismo vigorava a pleno, na Inglaterra, há cerca de 100 anos3.

Sem dar spoiler do filme, era no tempo do rei — e lá, paradoxalmente, ainda hoje o é, só que da rainha —, e o pano de fundo histórico da película mostra uma batalha pouco difundida, o papel das ditas feministas da época, em luta pelo direito de voto. Só por isso já vale o filme. No caso, a mãe é apresentada como uma carbonária, que levantava a bandeira tricolor do movimento — roxa, verde e branca — para militar pela causa, a partir do bordão “Facts, no words” (Fatos, não palavras). 

Impressionante é que, se ligarmos o filme ao documentário que há no Youtube sobre a história do movimento, How British suffragettes fought for the vote4, descobrimos que aquilo que é sugerido no filme realmente envolvia estratégias de luta, como a técnica do jiu-jitsu, para se defender da polícia, como incêndios provocados, como destruição de obras de arte e de fábricas, etc., numa organização articulada e francamente clandestina que não dava o braço e o espartilho a torcer. 

Mais impactante ainda é a atitude tomada por uma delas, de forma individual, em 1913, em edição do Ebson Derby, a mais prestigiosa corrida de cavalos da Inglaterra, tradição desde 1870, naquela ocasião com a presença do rei George V e de seu cavalo Anmer, que fazia parte da competição. 

Emily Davison seria a primeira vítima a dar a vida pelo movimento, em ação flagrada e registrada em sua integralidade para a posteridade pela câmera do cinematógrafo, na Tattenham Corner, a curva final da prova. Antevisão mais do que espetaculosa, como se vê, primórdios da sociedade do espetáculo.

A cena é acachapante: em roteiro meticulosamente planejado e empunhando a bandeira do movimento, Emily atira-se à frente justamente do cavalo do rei. O incidente mexeu com corações e mentes e acabou sendo definitivo para o desenrolar do movimento, com o sucesso posterior da aprovação da lei que veio a garantir, inicialmente, o direito de influir nas decisões políticas da nação elizabetana às mulheres maiores de 30 anos. O resto é história…

Mas voltando ao filme original, em produção certamente tendo em vista o aniversário de 100 anos da aprovação da lei, só por recuperar, de forma quase descompromissada, mas instigante, esse período histórico, já vale a experiência – revela-se o mistério do início do fim da supremacia masculina na política da ilha, embalados pela segunda guerra mundial. No caso, nada como um gesto heroico para fazer a roda da história acelerar sua marcha. 

Mas neste momento, em que, dentre outras coisas, se duvida da esfericidade da Terra, não precisamos ser nenhum Sherlock para percebermos que o mundo anda para trás. Quando parece confirmar-se a vida em Marte, comprova-se a desinteligência da civilização atual, prenúncio de sua derrocada. 

E no Brasil talvez seja pior, mesmo sem rei ou rainha, Black lives matter, #metoo, ecologia, aquecimento global, pandemia e direitos da civilização autóctone provocam mera indiferença, ou pior, polêmica vazia perdida nas fake news da vida. O desaparecimento de Amarildo, o assassinato de Marielle, a morte de Beto Freitas, as queimadas na Amazônia e no Pantanal, os quase 180 mil mortos de Covid-19, a destruição da cultura dos silvícolas — nada parece nos arrancar da nossa bolha, verdadeira indignação indigna, que não atravessa as paredes de nossa casa, nas palavras do grupo mineiro Skank5.

Mesmo sabendo que “Infeliz é a nação que precisa de heróis”, segundo Brecht6, a pergunta que não quer calar é se a única saída não seria talvez o gesto tresloucado individual, assim como o de Emily Davison, para nos acordar desse pesadelo – um gesto de insubordinação que nos sacuda a consciência e desperte um movimento coletivo. Quem sabe?…

Nesse sentido, a dita biografia de D. Pedro II atribuída a Machado — que fotografou como ninguém a transição do Império à República na Terra Brasilis — talvez não seja tão importante assim, pelo menos em termos de literatura, mas muito mais em termos de história.

Sendo, ou não, a autoria confirmada, mentalmente, enquanto nação, apesar de estarmos cronologicamente em tempos ditos republicanos, nossa alma nacional parece insistir em repisar receitas imperiais. Parece que, ao fazermos a troca, ficamos no seis em vez da meia dúzia, pois nossos valores republicanos se parecem cada vez menos públicos e mais aristocratas, no mau sentido. A prova disso é que vidas humanas ainda são pesadas de acordo com sua origem, com a cor da sua pele, com a sua condição econômica. Não conseguimos nos desprender desse laço suserano/vassalo, verdadeira república do “você sabe com quem está falando?”.

Triste país. Sei que este texto tem algumas rabugens de pessimismo. Talvez um dia um dia cheguemos lá. Aqui saímos do Império, mas o Império não parece ter saído de nós. Por enquanto a cidadania, a República, é um retrato na parede. E como dói. Mas fica a reflexão. “Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”7.


1“D. Pedro II (Esboço biographico)”, publicado na edição número 10 da “O Espelho – Revista de litteratura, modas, industria e artes”, no domingo dia 6 de novembro de 1859. A notícia circulou bastante. Ver https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2020/09/18/pesquisadora-da-ufsc-diz-que-biografia-de-dom-pedro-ii-pode-ter-sido-escrita-por-machado-de-assis.ghtml 

2Enola Holmes, lançado no dia 23 de setembro de 2020, na Netflix, é um filme de mistério de 2020, baseado na série literária homônima de Nancy Springer, dirigido por Harry Bradbeer e escrito por Jack Thorne, o qual conta a história de Enola Holmes, uma adolescente que fará de tudo para encontrar a mãe desaparecida, inclusive despistar o irmão, Sherlock Holmes, e ajudar um jovem lorde fugitivo.

3O Parlamento britânico aprovou, em 6 de fevereiro de 1918, uma lei que outorgava o direito ao voto às mulheres maiores de 30 anos, que, naquele momento, eram mais de oito milhões. Dez anos depois, o sufrágio universal foi estendido para todas as pessoas maiores de 21 anos, o que ampliou para 15 milhões as mulheres com direito ao voto no Reino Unido.

4<https://www.youtube.com/watch?v=0EIFDSb7tWc&feature=youtu.be>

5In: CD Skank (1993) – In(dig)Nação – “A nossa indignação / É uma mosca sem asas / Não ultrapassa as janelas / De nossas casas” (Samuel Rosa / Chico Amaral).

6Brecht, Bertold. Vida de Galileu (1938), cena 12.

7Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1881, Ao leitor, capítulo introdutório.


Breno Serafini é natural de Santiago-RS, nascido em 14 de março de 1961. Com doutorado em Letras pela UFRGS, é autor dos livros Mosaico Laico (CBJE, 2010), Geração Pixel (Edições do Autor, 2012), Millôres Dias Virão (Libretos, 2013), Picassos Falsos (Buqui, 2014), Bichos de Todos os Reinos, (Edições do Autor, 2015) e Colloríssimo – a coroação e o destronamento de Collor segundo Verissimo (AGE, 2016).

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