Crônica | José Falero

Dia D

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Dia D

Um tal de Albert Einstein afirmou que E = mc². Em outras palavras, disse que a energia é igual a massa vezes a velocidade da luz ao quadrado. O que não consigo entender, por mais que me esforce, é o motivo de essa equação ter se tornado tão célebre. Afinal, isso interessa a quem? Qual é a aplicação disso no dia a dia das pessoas? Poxa! Tanta gente formulou equações tão mais úteis do que essa! Eu mesmo, inclusive, já formulei uma equação muito mais útil. O leitor duvida? Pois então veja, aqui está ela: PPP + MDP + TMP + DMA = CVN.

Confuso demais? Calma, explico.

No colégio onde cursei a sétima série havia um troglodita que promovia o terror. Ou seja, distribuía petelecos nas orelhas, socos nas costelas, chutes nas canelas e por aí vai. Não respeitava ninguém. E se ele perturbasse uma pessoa pela primeira vez sem que houvesse qualquer reação, era certo que perturbaria essa pessoa para todo o sempre. Esse fato, na nossa equação, assume a forma de PPP, que significa “possibilidade de perturbação perpétua”. Então, somemos esse fato a um outro: o fato de que eu não queria ser perturbado eternamente por aquele marmanjo depois que ele me deu um tapa na nuca para testar minha paciência; aqui já estamos falando de MDP, que significa “meu desejo de paz”. Em seguida, somemos, também, o fato de que o camarada tinha o triplo do meu peso (TMP) e o dobro da minha altura (DMA). O resultado da equação é CVN, que significa “cadeira voando nele”, porque atirei uma cadeira nos beiços do infeliz.

Na avaliação do melhor amigo que eu tinha no colégio, e que sentava ao meu lado na sala, tirei nota máxima e fui aprovado com louvor.

— Perfeito, perfeito! — disse ele, balançando a cabeça. — Foi bom tu mostrar pra esse trouxa que tu não vai ficar aceitando cachorro só porque ele é uma munaia e tu tá na capa da gaita.

Mas a avaliação da professora foi diferente.

— Pombas, tchê, tu não podes resolver os impasses atirando cadeiras nas pessoas!

A sentença: proibido de ir ao passeio que o colégio fazia todo ano ao City Park.

Na noite daquele mesmo dia, comentei com meus amigos sobre o ocorrido, enquanto a gente fumava maconha na praça da vila, ao som de Da ponte pra cá. Para a minha surpresa, descobri que todos eles, sem exceção, também tinham sido proibidos de ir ao passeio, por motivos variados.

— Coloquei laxante na merenda.
— Furei o pneu do carro da vice-diretora.
— Joguei uma bombinha na sala dos professor.
— Roubei os doce da festa junina.

Outra vez nós aqui, vai vendo
Lavando o ódio embaixo do sereno

Cada um no seu castelo
Cada um na sua função
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hey, mulher é mato, a Mary Jane impera
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico
E distingui o Judas só no psicológico
Ó: filosofia de fumaça, analise
Cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar? Quem não? Mostra quem
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém

De repente, me dei conta de que só havia malandros de qualidade reunidos ali. Era a nata do colégio. Só os piores, do ponto de vista da diretora; só os melhores, do nosso próprio ponto de vista. Os livres. Os fadados ao fracasso.

Aquela conversa, naquele contexto, ao som daquela música, me inspirou uma das mais brilhantes ideias que já tive na vida. E se a gente fosse ao City Park por conta própria? Mais do que isso: e se a gente fosse ao City Park por conta própria na mesmíssima data em que o colégio iria, só para ter o gostinho de encontrar com os professores que nos proibiram de ir?

Mais uma vez, aprovado com louvor pelos da minha espécie. Apertamos a mão uns dos outros: era uma promessa: acontecesse o que acontecesse, daríamos um jeito de ir ao City Park por conta própria na mesmíssima data em que o colégio iria — o Dia D, conforme começamos a chamar a partir daquele momento. Se as nossas mães não nos deixassem ir, iríamos fugidos; se não conseguíssemos juntar dinheiro, roubaríamos alguma coisa e venderíamos; se o pessoal do parque aquático não permitisse a entrada de menores de idade sem o acompanhamento de algum responsável, pularíamos o muro. Mas iríamos.

E fomos.

Quando o Dia D chegou, parecia que Deus tinha abençoado o nosso plano: não havia uma única nuvem no céu e a temperatura beirava os 30 graus na primeira hora da manhã. Éramos já um grupo muito maior do que o inicial: alunos que nem mesmo tinham sido proibidos de ir ao passeio com o colégio aderiram ao nosso plano e embarcaram na nossa aventura, assim como alguns malandros mais velhos, que já tinham até se formado e, portanto, saído da escola. Todos com dinheiro no bolso, acumulado durante meses.

Foi uma odisseia. Não fazíamos a menor ideia de como chegar ao City Park. Não existia Google, naquele tempo. Pelo menos não para nós. Mas sabíamos de uma coisa: antes de tudo, precisávamos ir ao Centro: se existisse um ônibus que pudesse nos levar ao nosso destino, esse ônibus certamente sairia de lá.

— Mano do céu, tô louco pra ver a cara daquela tropa de filho da puta quando nós chegar chegando no bagulho.

— Pode crê. Já tô até vendo. “Ai, fulaninho, tu não estavas proibido de vires ao passeio?”

— Um dia é da caça; o outro, do caçador. O ano todinho ouvindo desaforo atrás de desaforo daqueles professor pau no cu. Agora nós vamo tá por conta, e com a língua bem afiada. Vai ser a nossa vez de dizer bastante desaforo.

— “Epa, pera lá, muita calma, ladrão.” Deixa pra dizer os desaforo depois do almoço.

— Como assim?

— Te liga, mano: o colégio vai fazer a maior churrascada. É assim todo ano. Esqueceu? Os professor não sabe que nós tá indo por conta. E é foda controlar essa parada. Imagina: uma pá de ônibus saindo do colégio, tudo lotado de aluno! Tu acha mesmo que eles vai se tocar que nós tá lá por conta? Deixa eles ficar confuso. Deixa eles pensar que teve engano. Deixa eles pensar que a diretora deu uma colher de chá pra nós na última hora, sei lá. Daí a gente come gordo nas costa do colégio, sem gastar um centavo. Quando eles descobrir que alimentaro os animal errado, daí já vai
ser tarde.

— Porra, bem pensado!

O Centro, que devia ficar mais ou menos no meio do nosso caminho até o City Park, marcou também a metade do nosso rumo à embriaguez absoluta: foram seis litros de cachaça com refrigerante da vila até o fim da linha do Pinheiro-Viçosa. Nesse primeiro ônibus, passamos todos por baixo da roleta, a fim de pouparmos ao máximo o nosso dinheirinho tão duramente conquistado e economizado: no City Park, sabíamos, nada que estivesse à venda custaria menos do que os olhos da cara.

Perambulando pelo Centro, perguntando aqui e ali para os fiscais das empresas de ônibus que atendem a população dos municípios em torno de Porto Alegre, descobrimos a linha que deveríamos pegar. Nunca vou esquecer o nome: “Guajuviras via Assis Brasil”. O ônibus andava e andava e andava e parecia que não chegaria nunca a lugar algum. Perdi as contas de quantas vezes perguntamos ao cobrador se ainda faltava muito para o ponto onde deveríamos descer, ele sempre respondendo que sim.

Quando por fim desembarcamos no local indicado pelo cobrador, nos vimos no meio do nada. Só o que havia eram três rumos possíveis: podíamos retroceder na rodovia pela qual o ônibus que nos trouxera viera; podíamos avançar nessa mesma rodovia; ou, a exemplo do que acabava de fazer o próprio ônibus, podíamos enveredar pela estrada de terra que ali iniciava.

— O negócio é a gente seguir em frente nessa rodovia mesmo.

— Por quê?

— Pensa comigo, sangue bom: se fosse pra gente voltar pra trás nessa rodovia, o cobrador ia ter falado pra nós descer antes; e se fosse pra gente ir por essa estrada de chão batido que o ônibus foi, o cobrador ia ter falado pra nós descer depois.

Eu tinha ressalvas àquele raciocínio, mas não podia negar que era o melhor raciocínio à nossa disposição no momento. E, de mais a mais, nos levou a eleger o caminho correto: para a nossa completa alegria, após quase uma hora inteira de caminhada, vimos surgir diante de nós, à beira da rodovia, uma placa gigantesca: “City Park a 2 Km”.

Estávamos a poucos passos da entrada do parque aquático quando veio se aproximando, às nossas costas, uma porção de ônibus. E, quando esses ônibus passaram ao nosso lado, foi grande o alvoroço. Diversos meninos e diversas meninas da nossa idade gritavam o nosso nome e nos apontavam pelas janelas, como se fôssemos heróis. Eram os alunos do nosso colégio, chegando ao City Park praticamente junto conosco.

Uma data memorável. Não importa quanto tempo passe, não importa o que aconteça, jamais esquecerei aquele longínquo Dia D. Jamais esquecerei aquele calor, aquele céu azul, aquela felicidade. Jamais esquecerei de como é fácil enfrentar o mundo quando estamos em bando, lado a lado com os da nossa espécie. Jamais esquecerei a cara dos professores quando nos viram empinando caipirinhas e vieram nos dizer que não podíamos consumir bebidas alcoólicas e descobriram que tínhamos ido ao City Park à revelia da escola e perceberam que tínhamos comido o churrasco deles indevidamente. Jamais esquecerei que foi naquele longínquo Dia D que entrei numa piscina pela primeira vez, que andei num tobogã pela primeira vez, que beijei uma boca pela primeira vez, que vomitei de tanto beber pela primeira vez.

Curioso… Na noite daquele mesmo dia passou O resgate do soldado Ryan na televisão. Lembro muito bem disso porque, já de volta em casa, são e salvo após a maior aventura da minha vida, assisti ao filme com a mais profunda sensação de que tentava me dizer alguma coisa. E, bem, espero que o leitor me perdoe pela pachorra de trazer O resgate do soldado Ryan para uma história que começou com equações, passou por estradas desertas, chegou a tobogãs e poderia muito bem, reconheço, ter se encerrado no parágrafo anterior. Além disso, para evitar de perder-lhe de vez a atenção, corro a jurar que não pretendo ser óbvio e falar sobre a famosa cena que retratou os históricos Desembarques na Normandia — operação militar que, a exemplo da nossa Grande Ida ao City Park, também foi batizada de Dia D. Não, não é essa minha ideia. Quero traçar um paralelo muito mais interessante, pelo menos a meu ver. Acompanhe.

Há, no filme, uma cena absolutamente brilhante, em que o silêncio termina por dizer mais do que as palavras. O pelotão passa a noite nas ruínas de uma construção, se não me engano em Néville. Então, enquanto os soldados descansam, os dois militares de patente mais alta, que já tinham estado lado a lado em muitas outras missões e combates, começam a conversar, já que não conseguem dormir. Nisso, relembram histórias de diversos soldados que estiveram sob seu comando. Citam o nome daqueles jovens, sorriem ao recordar seus hábitos, seus trejeitos, suas particularidades. Aí, de repente, o silêncio. Um silêncio pesado, incômodo. O sorriso desaparece do rosto deles. E, sem que uma única palavra seja dita, o espectador do filme consegue se dar conta do que os dois personagens estão pensando: aqueles jovens, agora, não passam de uma lembrança, porque morreram.

Claro que não fui capaz de relacionar isso com a minha própria vida naquela noite, enquanto assistia a O resgate do soldado Ryan. Hoje em dia, porém, toda vez que relembro histórias do tempo da escola, como acabo de fazer neste texto, me sinto um pouco como a dupla de militares do filme pareceu se sentir naquela cena. Um dos amigos que foram ao City Park comigo naquela oportunidade morreu, ao capotar um carro roubado na Ipiranga, fugindo da polícia; outro foi assassinado com um tiro nas costas, por causa de um mal entendido; outro acabou decapitado, por motivos que desconheço; outro ainda entrou para o tráfico e morreu em confronto com uma quadrilha rival. Dois perderam-se nas drogas. Um foi morar na rua.

Nossa vida era uma guerra, e ninguém nunca nos avisou.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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