Crônica

Duas vezes por mês

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Duas vezes por mês

Dia desses um colega chegou e perguntou, assim do nada, como se o contexto da mente louca dele estivesse o tempo todo no universo:

‘‘Tá, se te pedissem um serviço duas vezes por mês, tu aceitava?’’

Eu, cética e paranoica do jeito que sou, achei aquilo aleatório demais e tive que perguntar:

‘‘Pediram pra você fazer o quê?’’

Ele me olhou, meio de lado, meio já levantando pra encerrar a conversa:

‘‘Você sabe…’’

Eu não sabia, e o filho da puta ainda bateu o resto da bituca que ocupava o espaço entre seu indicador e o dedo maior num movimento circular perfeito que terminou numa tragada jogando o castanho escuro dos seus olhos sobre mim:

‘‘Afinal, o que eu ainda faria duas vezes por mês?’’ 

Desde algumas semanas, talvez por ter tomado as duas doses da vacina contra a mortandade da Covid-19, eu ando com um senso subversivo dentro dos músculos. Porém, minha rotina continua praticamente a mesma de todos estes meses. Trabalho de segunda a sábado, feira na terça à tarde, conversa com alguma amiga uma vez por semana e… é verdade, acho que duas vezes por mês eu tenho a felicidade de comer uma pizza.

Pizza é uma palavra cuja imagem depende de onde você é e onde você se criou. São Paulo é um primor. Pizza é pizza. A discussão nem nasceu e acaba aí. Já em outros lugares do Brasil… Se você se encontra, por exemplo, em Porto Alegre, poderá desfrutar da oportunidade de pedir uma massa do tamanho do tapete que cobre mais da metade da sua sala com 4 mil sabores diferentes e isso é o que se conhece por ‘‘pizza família’’. Amo pizza. Mas se eu tivesse que escolher uma coisa pra fazer duas vezes por mês, só uma coisa, talvez não gastaria meu desejo mágico com pizza, nem que fosse uma paulista.

Talvez o meu órgão principal não seja o estômago. Quem sabe eu sou um grande clitóris desejante? Eu poderia ser feliz com sexo duas vezes por mês. Comparado com o meu atual momento que é um grande deserto sem previsão de tempestade de areia ou visita de chuva… A pandemia trouxe todo tipo de adaptações fisiológicas, duas vezes por mês seria ótimo. Mas qual seria o preço? Nada é generosamente gratuito na vida, não quando vindo de pessoas conhecidas. Talvez uma hora a satisfação sexual não seja mais uma prioridade, afinal, nos conhecemos, temos espaço o suficiente para nos expressarmos, e aí começa o purgatório da ‘‘amiga com benefícios’’. Diferente do inferno da amante, repleto de culpa e desejo que se retroalimentam, o purgatório tem muita conversa e pouco orgasmo. Porém, antes do paraíso da esposa, aquele lugar ao qual todo mundo sonha ir, mas quando chega não se lembra mais qual era o motivo, o purgatório ainda carrega o anonimato das relações nascidas fora da luz do dia. Nada de foto na rede social, quem precisa disso? Nada de videochamada com a família, você ainda está solteira.

Quem sabe eu possa passar o mês sem sexo, deve ter algo mais concreto e prazeroso para preencher o calendário. Olhando assim, com um leve esforço, só tem uma coisa que realmente valeria a pena esperar pra ter duas vezes por mês: dançar forró! Um rala-coxa dos bons tem seu valor. A música começa pelas mãos livres e apaixonadas do sanfoneiro e as energias do salão afloram. Três passos na minha direção, um olhar que se encontra e uma mão estendida é o convite que se aceita com um sorriso. O enlace dos dedos, a sensação do calor que emana do seu corpo, e a completude num abraço. O primeiro dois-pra-lá é uma tentativa, a paradinha a chance de recomeço, e em menos de um segundo a condução se dá através da entrega.

O xaxado é a chance de reaver antigos ritmos. O xote é quase um carinho. Dançar forró é uma expressão de amor. O mundo seria mais feliz se a gente pudesse sair de casa pra dançar, nem que fosse só duas vezes no mês.


Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica vacinadora, e depois de ter morado em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça, hoje vive em Porto Alegre. Lançou Aqui dentro pela editora Venas Abiertas. Disponível para venda pelo Instagram da própria autora: @nathalliaprotazio

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