Crônica | José Falero

Eu tinha toda a razão

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Eu tinha toda a razão
Para Dalva Maria Soares

E não é que, dia desses, fotografaram um buraco negro? Um feito notável, sem dúvida. Sobretudo porque, na verdade, não é realmente possível tirar uma foto de um buraco negro. Só o que dá para fazer é fotografar um monte de matéria incandescente orbitando um enorme objeto invisível e, com base nisso, concluir que esse objeto é um buraco negro. Afinal, qualquer luz projetada em direção a um buraco negro será aprisionada para sempre em seu campo gravitacional e jamais voltará para contar a história a olho nenhum e a lente nenhuma.

Com o amor, acontece coisa parecida. Do mesmo modo que não se pode aprisionar um buraco negro em uma fotografia, também não é possível encarcerar o amor em um conceito; da mesma forma que um buraco negro jamais será visto por qualquer olho, também o amor nunca será compreendido por cérebro nenhum; do mesmo jeito que não adianta de nada lançar a luz em direção a um buraco negro, também é inútil projetar a razão sobre o amor.

Por outro lado, assim como é possível deduzir que um buraco negro existe a partir das evidências que giram em torno dele, também a existência do amor é denunciada pelos indícios que o orbitam. Tudo bem: tu nunca verá um buraco negro, mas admitir que ele existe é a única forma de explicar a velocidade absurda com que quantidades de matéria também absurdas giram em torno de um ponto do espaço onde os teus olhos insistem em dizer que não há nada; do mesmo modo, tu nunca compreenderá o amor, mas assumir a existência dele é a única forma de explicar tanto zelo, tanta cumplicidade, tanto companheirismo, tanta afinidade, tanto bem-querer, tanta vontade de estar junto, tanta admiração, tanta ânsia de fazer um carinho naquela criatura que o teu cérebro insiste em reduzir a “uma pessoa como outra qualquer”. Ah!, mas não é uma pessoa como outra qualquer! É a pessoa que tu ama. E o teu cérebro nunca dará conta de processar isso. Não é da alçada dele.

Confesso que eu não acreditava no amor. E olhe que eu tinha toda a razão. Era justamente esse o meu problema, inclusive: eu tinha toda a razão. Agora, já não tenho mais razão nenhuma: eu amo. Não só amo, como sou também amado. Desaposentei o coração, fiz as pazes com o mundo, tirei o pó da felicidade, pus a alma ao sol, reaprendi o sorriso, respirei aliviado.

E é com a força de todos os astros que eu orbito um grande amor, a mil e setecentos quilômetros de distância.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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