Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai | Crônica

Irresponsabilidade

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Irresponsabilidade Imagem genérica shutterstock

Fiz o teste do COVID essa semana. Tudo começou com uma colega que não apareceu pra trabalhar segunda-feira. Pensei logo naquela dor de barriga típica do pós-fíndi. Sem julgamentos. Quem nunca? Mas que ressaca que nada, era o tal do ‘corona vairus’ assolando mais um ser humano. Daí, imagine. Foi aquele deus nos acuda. Fecha, não fecha. Angústia. O álcool gel rolando solto. O medo e a miséria. No dia seguinte a equipe toda de excursão pro laboratório de análises clínicas. Eu estava só o zumbi. Deitei umas 22h30. Às 3h20 acordo e não consigo mais dormir. Isso mesmo. Você pode até pensar, Bah, cinco horas de sono pra mim tá de boas. Essa não é a minha realidade, minha gente. Sono é sagrado. Sono é vida. Aquele povo todo ali e meu mau humor aflorando. Pra evitar encher o saco da galera que não respeitava o distanciamento nem na fila do teste, resolvi ruminar umas coisas na minha cabeça.

Quando a quarentena começou e eu me vi perdida num mar de fake news e recomendações da OMS, fiz o mais óbvio: gambiarra. Me orgulho disso? Não. Mas… O que eu podia fazer? Peguei minha antiga rotina, passei um café, sentei na bancada e comecei minha equação. Ok, então agora é só viver como eu vinha fazendo, mas sem sair de casa por uns dias e passar álcool gel. Tranquilo. Passou um mês. Tudo bem, só viver como eu vinha fazendo, sem sair de casa, nenhum boteco, não visite as gurias, nada de samba também e use máscara. Beleza. Mais um tempo e, nada de sair de casa mesmo! Esquece tudo! Sexo? Nem pensar! Nenhuma escapadinha social, álcool gel, máscara, distanciamento, zero abraços, contato só no olhar. Tudo isso sem nenhuma ideia do fim da brincadeira.

Uma hora a ficha cai. Sair viva desta pandemia vai além de transmutar a antiga rotina em uma antiga-rotina-sem-algumas-coisas-e-mais-outras. Não se negocia com a vida desse jeito. Construímos uma nova maneira de viver cheia de responsabilidades, deveres, comportamentos sociais. Além de tudo isso, o peso de uma ação simples, como lavar as mãos corretamente ou higienizar as chaves de casa, tornou-se vital. Foi como se da noite pro dia toda nossa agenda comportamental tivesse passado pelas mãos de um médico sanitarista com sangue nos olhos. Tudo que fizéssemos agora carregaria a medida de uma representação moral de vida ou morte. Minha morte ou vida e a vida ou morte dos outros. Que puta cansaço!

Eu repassava minhas atitudes do último semestre aguardando a enfermeira me chamar. O que seria melhor? Dar positivo ou negativo? Se desse positivo só confirmaria que eu fui uma infectada assintomática. Talvez eu me permitisse psicologicamente deixar a pandemia no passado. Deixaria mesmo? Será que eu teria infectado alguém? Todas as pessoas que eu atendi na vacinação da gripe. Será que teria pego durante a campanha? Qual teria sido o erro fatal? Cocei o olho? Cocei muitas vezes o olho. Talvez eu não tivesse nenhuma chance de dar negativo trabalhando fora todo dia. Impossível. Se der negativo é necessariamente um falso negativo? Posso confiar neste resultado? O teste com certeza será bem realizado. Posso ficar calma. Quem sabe as medidas sanitárias foram realmente eficazes me protegendo todos esses meses. Se der negativo eu devo continuar minha conduta ou posso respirar um pouco? Relaxar é uma opção? Estou exagerando, droga. O que realmente seria menos pior? Positivo ou negativo? Não conseguia me decidir.

Revia toda a minha nova rotina semanal e ela não incluía nada que se comparasse à fuga de realidade que praticava na sexta-feira e que tanto precisava. Eu não havia previsto momentos de irresponsabilidade. Leves e inofensivas irresponsabilidades. Posso ficar horas lendo sobre o ódio à raça humana que escorre das páginas d’As mulheres de Tijucopapo, da Marilene Felinto, no sábado à noite. Contudo, isso nunca irá substituir a sensação de odiar a humanidade na calçada da Lima e Silva, enquanto acompanho a Marcela num cigarro com um certo nível de álcool no sangue. Entre uma fumaça e outra, algum grupo de adolescentes vai passar cortando o ritmo do pagode ao fundo, vindo do boteco, com uma JBL a toda altura ‘‘Talarica, tava sentando no macho da sua amiga (…)’’. A garoa e o frio de Porto Alegre vão incomodar a minha garganta de não-fumante e neste exato momento, com as sensações alteradas e talvez até uma satisfação percorra minha pele, eu tusso vivendo uma ingênua irresponsabilidade.

A enfermeira me chama, Nathallia Vilela! Porra. Há quanto tempo ninguém me lembrava do sobrenome da família da minha mãe. Essa mulher não me conhece mesmo. Movo meus pés como quem usa uma galocha maior que seu tamanho na chuva. As gotas de água inocentes e frias caem sobre minha cabeça enquanto eu me aproximo da sala de coleta de sangue. Ela não sabe, mas eu ainda não estou pronta para fazer este teste. Eu ainda não sei como vou reinventar minha rotina. Preciso de um momento de descuido para este fim de semana.  Uma furtiva e controlada loucura. Não sei se beirar levar uma multa por rock’in roll alto às 22h30 é uma boa ideia. Quem sabe dar uma volta no quarteirão? Ela me encara com ansiedade. Não sabe que ainda não estou pronta. Estou toda molhada de chuva. Não sei se é melhor um resultado positivo ou negativo. Um semestre inteiro e eu ainda não estou pronta.


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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