Crônica

Manaus e a batalha de feira de Santa Cecília

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Manaus e a batalha de feira de Santa Cecília

Na feira de sábado, que fica na divisa entre Santa Cecília e o conservador Campos Elíseos, a tensão entre a novidade e a tradição se estabelece a cada três barracas de frutas e dois berros enérgicos de que o preço do limão está baixando. Senhoras e senhores de família, fardados com seus vestidos de estampa única e camisas bem passadas, respectivamente, transitam por entre sapatinhas e bissexuais de cabelos curtos no corte modelar playmobil, aquele da franjinha aparada no centro da testa, e jovens gays portando cores neon nos shorts, calçam também tênis ou sandálias de couro que custaram muito caro mas que devem parecer ter custado quase nada, uma pechincha. 

Há certa animosidade velada no encontro, como uma guerra fria que se estabelece pelos silêncios e olhares belicosos, recheados de maneirismos e preconceitos – das duas partes, diga-se de passagem. Os mais velhos sentem uma leve decepção pela juventude que tomou as ruas de seu bairro nobre, onde São Paulo semeara a promessa de igualar-se urbanisticamente à luminosa Paris, em cujos paralelepípedos esta pequena burguesia, afável e bem educada em níveis aristocráticos, pisa às vezes, com seus sapatos de marca, sobretudo quando há uma queda do dólar.

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Na feira de sábado, que fica na divisa entre Santa Cecília e o conservador Campos Elíseos, a tensão entre a novidade e a tradição se estabelece a cada três barracas de frutas e dois berros enérgicos de que o preço do limão está baixando. Senhoras e senhores de família, fardados com seus vestidos de estampa única e camisas bem passadas, respectivamente, transitam por entre sapatinhas e bissexuais de cabelos curtos no corte modelar playmobil, aquele da franjinha aparada no centro da testa, e jovens gays portando cores neon nos shorts, calçam também tênis ou sandálias de couro que custaram muito caro mas que devem parecer ter custado quase nada, uma pechincha. 

Há certa animosidade velada no encontro, como uma guerra fria que se estabelece pelos silêncios e olhares belicosos, recheados de maneirismos e preconceitos – das duas partes, diga-se de passagem. Os mais velhos sentem uma leve decepção pela juventude que tomou as ruas de seu bairro nobre, onde São Paulo semeara a promessa de igualar-se urbanisticamente à luminosa Paris, em cujos paralelepípedos esta pequena burguesia, afável e bem educada em níveis aristocráticos, pisa às vezes, com seus sapatos de marca, sobretudo quando há uma queda do dólar.

Os jovens parecem sujos e desarrumados, porque andam batendo chinelas, e as mulheres, com os sovacos muito peludos bem como as pernas, não parecem ter vaidade alguma. Mal sabem os velhos que tudo é uma questão de estilo, e que as moças passam boas e vantajosas horas de pós-banho inundando-se em cremes de alto custo, amaciando e penteando com muito zelo todos os cabelos que se lhes enrolam pelo corpo, e mantêm frondosos moustaches para compor a grande homenagem a Frida Kahlo, aquela que seria uma das bruxas que os opressores não puderam queimar e que pariu netas desconhecidas, todas elas curiosa e invariavelmente brancas, magras, esguias e nascidas em famílias endinheiradas. São moças conscientes de seu privilégio, mas ávidas em torná-lo um privilégio sustentável, amigo do povo e da natureza. 

O grupo dos boys também ofende. São rapazes de trinta e poucos anos, mestrandos ou doutorandos dos direitos humanos, que vivem sozinhos em apartamentos amplos decorados com samambaias de tamanhos e tonalidades diversos. Animam-se com o fato de suas casas serem antigas, com marcas do tempo e da história. Gostam de enfeitar as paredes com bandeiras e pôsteres estampando a fotografia de revolucionários, de políticos ou de gente negra, que podem ser adquiridos ali naquele Armazém modernoso onde tudo é muito orgânico, muito saudável e muito comunitário. 

Ao lado do Armazém, a feira. A feira densa, dura, antiquada como uma mata selvática e tropical, com seus frutos, legumes, queijos e ervas cheirosos. A barraca das plantas, a barraca das bananas desesperadamente amarela de um brilho grosso e esperançoso.

O homem atrás dos frutos grita forte que o seu produto está acabando, venham comprar a banana, venham pegar na minha banana. Os velhos de Campos Elíseos ficam horrorizados, os jovens de Santa Cecília também. É nesse momento que se intercruzam as duas facções e que o mínimo de empatia pode surgir, brotar como uma flor de futuro no asfalto, dão-se as mãos as duas gerações para lançar olhar de censura ao homem que grita sobre a própria banana, o produto banana, vendido na barraca que está sob sua responsabilidade, revestido pela dubiedade da fala, banana é o órgão sexual do homem. 

Venham pegar aqui na melhor banana da feira, a minha banana. 

Os outros feirantes riem e devolvem a provocação com mais falas de caráter ambivalente. Horrorizados, os habitantes de Santa Cecília e Campos Elíseos unem-se no silêncio da ira e chamam o homem de macho escroto, mal educado, grosseirão, sem proferirem uma única palavra. 

Não bastasse a inconveniência no meio do sábado de compras, mais um elemento se junta à feira, todos o conhecem, é Manaus, mulato que carrega e descarrega os caminhões, mas que nas últimas semanas tem andado meio macambúzio, sorumbático, sem forças para o trabalho. 

É tudo uma bruma de mal-estar entre passado, futuro e Manaus. Velhice, juventude e Manaus. Novidade, tradição e Manaus. 

Ele carrega os olhos secos e pede dinheiro às pessoas que se alternam entre a caridade e a indiferença. Tem imensas olheiras que se espraiam pelo arame flácido de suas bochechas, é de causar pavor a miséria do moço. 

Arrecada oito reais. Tem um bom motivo para pedir as esmolas dessa vez, foi na segunda ao posto de saúde para apanhar o resultado do exame e passar pelo atendimento. 

A falta de ar piorada, a dor aguda nos ossos e nas juntas, o médico sem muita atenção receitou-lhe os remédios, Manaus tentou sacá-los no posto mas tudo em falta, então passou a pedir trocados para comprá-los na farmácia.

No bolso da camisa surrada, larga das magrezas cada dia mais aparentes de Manaus, estão a receita e o resultado do exame, Manaus ainda faz que vai pegá-los para provar da doença, para que não achem que ele está mentindo, para comprovar-se honesto e real diante de seus salvadores. Os dedos trêmulos se ajeitam para pinçar os papéis e nada, Manaus confuso, com as articulações desmontadas, um boneco de madeira sem parafusos, desiste. 

Ninguém pode ver, nem os velhos de Campos Elíseos, nem os jovens de Santa Cecília,  a receita repleta de garranchos e carimbos institucionais e o resultado do exame cardíaco: tudo em ordem a não ser por um discreto acidente na frequência dos batimentos cardíacos de Manaus, o médico interpretou como um pequeno derrame, uma pequena pausa a fazer com que os batimentos se atropelem, como uma multidão embriagada pelo tropeço de uma única pessoa, uma pequena morte: uma pequena morte no coração de Manaus, uma pequena morte, nada grave.


Paloma Franca Amorim nasceu no ano de 1987 em Belém do Pará. Publicou crônicas ao longo de dez anos no jornal paraense “O Liberal”. Em 2017 reuniu e lançou essa produção em um livro chamado Eu preferia ter perdido um olho, publicado pela Alameda Editorial. Prepara o lançamento do romance O Oito no primeiro semestre de 2021, pela mesma editora. Além de escritora, é artista visual e professora. Filha de Antonio e de Darcy.

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