Crônica

Me chame pelo meu nome

Change Size Text
Me chame pelo meu nome Foto: Nathalia Rosa / Unsplash

“Aqui ninguém sabe nem o meu nome.”

Esta foi a frase que “deixei escapar” para que Diana e Thiago, dois colegas do trabalho, ouvissem. Isso já vinha me incomodando desde quando comecei a trabalhar naquele supermercado, dois meses antes. Acontece que sou promotor, um repositor terceirizado, não sendo, de fato, funcionário da loja, apesar de trabalhar ali. E o costume é que os promotores sejam chamados pelo nome da empresa que os contratou. 

Porém, mesmo que intimamente sentisse minha dignidade ferida, não pretendia falar nada a respeito. Minha experiência de trabalho anterior foi numa livraria: algo com que sonhava desde criança. E foi a pior experiência que já vivi, servindo apenas para que eu aprendesse uma grande lição: dentro do capitalismo, qualquer trabalho te desumaniza de uma forma ou de outra, e a desumanização escancarada é mais suportável (e menos perigosa) que a sutil. Então por que eu deveria incomodar meus colegas agora (e com uma questão que, além de “banal”, era apenas minha), quando sabia muito bem que todos ali estavam ocupados demais tentando apenas sobreviver? 

Mas naquele dia não consegui me segurar, e falei. Falei porque estava exausto depois de seis horas de esforço ininterrupto; falei porque me sentia fraco devido a dois dias me alimentando, basicamente, de fubá; e, por fim, falei porque fico carente quando estou cansado.

Depois disso, os dois passaram a me chamar pelo nome, em alto e bom som – até demais. E, por umas duas semanas, passaram também a fazer gracejos quando havia outros colegas por perto: “Ei, você conhece o Douglas? O nome dele é Douglas, tá? Ele quer ser chamado de Douglas”. Foi decepcionante ver que tratavam algo tão sério como piada. Mas também, o que eu deveria esperar? Desde que nascemos, todos somos expostos a ideologias desumanizadoras. Todos somos muito bem preparados e treinados para a indiferença. Sabendo disso, não me admira que meus colegas não estivessem equipados para reagir de outra forma à minha queixa. Optei por acreditar que não faziam aquilo por maldade e esperar que a graça diminuísse aos poucos. 

Segui enfrentando um dia de trabalho de cada vez. Ainda exausto, ainda carente e, com alguma frequência, ainda faminto. Mas agora um pouco menos anônimo. Já era alguma coisa.

Até que, semana passada, tive uma grata surpresa.

Não sei se comentei, mas devo dizer que costumo trabalhar cantarolando, ou em silêncio. Raramente “puxo assunto” com alguém. Por conta disso, quem não me conhece pode, não sem razão, me considerar antipático. Mas juro que não faço por mal. É que, desde criança, sempre fui muito só; e, como tantas outras crianças solitárias já fizeram, buscava me salvar da solidão através da leitura. Não era lá uma estratégia muito eficiente, mas já me trazia um grande alívio. No entanto, mesmo o remédio mais benéfico traz malefícios a longo prazo. No meu caso, tantas horas dedicadas à leitura (em detrimento de quaisquer outras atividades possíveis) deram origem a uma falha grave: acabei me tornando um adulto que sabe conversar bem apenas sobre livros. E a literatura sempre foi – e continua a ser – um tema bastante exclusivo, no mau sentido da palavra (se é que existe algum bom). 

Enfim… minha timidez e minha “falta de jeito” pra me aproximar das pessoas (além do meu perfeccionismo compulsivo e da carga de trabalho de três pessoas concentrada em uma só) fazem com que eu dedique um foco exagerado a qualquer tarefa. Por conta disso, não falo muito. E quando alguém fala comigo, às vezes não percebo, e às vezes me assusto.

Felizmente, não cheguei a me assustar quando, no trabalho, numa tarde como outra qualquer, um colega, que naquele momento abastecia outra porta do mesmo freezer, me perguntou o que eu gostava de ler. 

Vocês não imaginam a alegria que senti ao escutar aquilo! Se ele puxasse assunto comigo sobre, sei lá, futebol ou modelos de carros, talvez eu conseguisse, com um grande esforço, formular alguma resposta que fizesse sentido. Mas o mais provável mesmo seria eu ficar mudo de desespero, terminando por emitir, tarde demais, algum monossílabo, só para evitar a culpa de um silêncio completo. 

Mas não! A leitura era o assunto da vez, e sobre isso eu sabia falar! 

Pelo menos de minha parte, a breve conversa que tivemos foi bastante animada, indo de Castro Alves a Machado de Assis, passando depois por Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento. Perguntei se ele conhecia a obra do José Falero; ele respondeu que não, então tratei de falar sobre Os Supridores, cuja premissa, para nós, era tão familiar e convidativa. Sucesso! Ele se interessou bastante, e é possível que no futuro conversemos mais sobre o livro. 

Tivemos que voltar ao trabalho.

Saí daquela conversa com uma sensação de “isso realmente aconteceu?’’, tão atônito que me esqueci de perguntar seu nome.

Douglas Belarmino nasceu no município de Santo Antônio dos Campos, em Minas Gerais. Tem 23 anos de idade e vive em Porto Alegre desde 2018. É autor de Persona non grata, livro autopublicado em 2020.

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.