Crônica

Não sente no fundo do ônibus sozinha

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Não sente no fundo do ônibus sozinha Esquina da Rua Uruguai c/ a Prefeitura Nova, 1994. Ilustração: Edgar Vasques

*Diversas imagens de Edgar Vasques homenageiam Porto Alegre na edição 67 da Parêntese. Você pode ver o ensaio gráfico completo na seção cartum. 

Quando ingressei no Ensino Médio conheci uma outra Porto Alegre. Acostumada a tomar a direção sempre mais para o sul, minha bússola virou para uma área da cidade em que eu só ia para fazer compras com a minha dinda, trocar fichas, namorar algum tênis na Ughini e tomar sorvete de chiclete nas Americanas. Minha escola até a oitava série foi o Roque González, que ficava a duas quadras de casa, na Cavalhada. 

Eu morava no Camaquã, na mesma casa onde minha avó Helena ainda mora. Não havia muitas escolas de Ensino Médio na região, e quem queria tentar o vestibular pleiteava uma vaga no Padre Réus (a gente pronunciava Réus assim como está escrito mesmo e, lógico, se entendia). Pelo sorteio, no Ensino Médio fui parar em outra escola, no bairro Assunção. 

Não me agradou, pois tinha de pegar um ônibus demorado para chegar a um lugar ermo, onde o gramado subia pelas paredes. Também ninguém do Roque tinha ido parar lá. Descontente com a escola sorteada, minha mãe escalou minha avó Aluisia (aquela que tinha o dom para desenrolar fios) para conseguir uma vaga em uma boa escola para mim e meu melhor amigo, o Alexandre (aliás, é da Porto Alegre com ele que eu mais sinto falta). 

Com auxílio da minha avó e da SEC, paramos no Parobé, onde tivemos uma boa formação e professoras memoráveis de Filosofia, Artes, Matemática, Geografia e Química. Minha professora de Literatura falava apaixonadamente de todos os livros do currículo e eu adorava a biblioteca, que também é um bom esconderijo para o bullying quando permitem que os alunos frequentem. 

O deslocamento era um tema tão forte para nós que muitos colegas ganhavam apelidos pelos seus bairros, como “as meninas Viamão”, “a Bruna da Tinga” (que era o nosso exemplo de pontualidade; ela ia de R10). Na saída da escola, ia com alguns dos meus amigos para a parada da ACM, onde a condução voltava para a pauta. A gente ria com a certeza de que os ônibus de Porto Alegre não falhavam em falhar: o ônibus do Alexandre, o Cohab, era o mais abundante, mas tinha também muitos assaltos; o T7, do Beck, era o que a gente achava que atendia os ricos, por ser superfrequente, relativamente vazio e do modelo mais moderno da Carris; o meu, o Padre Réus, era sempre o último, demorava muito e vinha lotado. Muitas vezes se faltava aula por causa do preço das passagens, e até se perdia o ano. 

Mais de uma década depois, várias das minhas percepções sobre a cidade mudaram, mas minha opinião sobre o transporte público continua fincada na memória que tenho daqueles dias.


Fernanda Bastos – jornalista e CEO da Figura de Linguagem

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