Crônica

Nego Pumba

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Nego Pumba

Eu nem tava nas pilha de ir pros inferno naquela noite, nas que é. Tem vez que o cara tá só por ficar de galinha morta, e daí nada era catar esses farelo de felicidade na desgraceira sem fim que é a vida do cara. Só que é foda: os nego me arrastaro. Pra isso, os miserável bem que têm o dom. Larguemo de mulão, pesado nos kit, que era início de mês e tava todo o mundo com as mascada; nem me pergunta pra que lado que andava a lua. E eu ali, mas no veneno, só por azedar a caminhada, ciente da minha cara de cu, respondendo tudo com um estalo de língua e com um “ti fudê!”. Nem pelo raio eu tava: quando os nego começaro a se coçar, me fiz de louco pra andar de ambulância. Mas dei um pé na boca com eles: melhor do que ficar fritando sozinho na parada. E daí quem é que eu pecho de louco, virado num morto-vivo, lá na escuridão da Serra? O Nego Pumba. Sereno, não era novidade, já tava todo o mundo comentando já que ele tava na pedra. Só que ver é outra coisa, titio. Ver é outra coisa. Ver e ainda por cima ter a lembrança que aquilo ali já tinha sido gente um dia, porra!, isso daí é foda demais, titio. Na hora, pensei mil fita. Lembrei dele me dizendo assim, um dia: “Viu só, mano? Quem aparece, joga, e quem joga, aparece”. Ih!, mile ano! Foi numa vez que eu gastei afu, lá no campo da Viçosa, e os nego só faltava sentar no meu colo. E, nas que é, ele tava dando o papo certo mesmo, nunca mais eu esqueci daquilo que ele falou. Porque eu me liguei que antes eu me mocozava mesmo; demorei uma cara a correr com os malandro mais velho, e daí até ia, mas ia com medinho. Só que naquele dia, sei lá, eu tava com os corno virado, tava de mal com o mundo, e quem é que não sabe que o coração é pequeno demais pro ódio e pro medo ficar os dois ali, junto, dentro dele? Daí me apresentei o jogo todo e pá, e como eu sou uma bala, acabou que eu comi todo o mundo com farofinha, titio, e os nego tudo viraro em bolita comigo. Porra, pro Nego Pumba, que é o Nego Pumba, falar aquilo que ele falou, só por aí tu já tira uma febre. Outro bagulho que me veio no melão, na hora que eu vi ele ali atirado, foi que uma vez ele invadiu a baia e me chamou pra rua, que queria me mostrar um bagulho. Achei estranho, ele tava eufórico e pá, mas, sereno, dei um pé lá com ele lá. Mó cena: o pau no cu tava com uma pá de carteira de crivo que tinha metido lá no mercadinho da Doze. Agora, eu fico até viajando: parece que tem um louco que diz que beleza é aquela fita que não dá pra olhar sozinho, e que o cara precisa convidar alguém pra ajudar a olhar. Porra!, eu nunca tinha delirado nessas ideia, mas agora, pensando bem, se pá o Nego Pumba me chamou naquela vez foi pra ajudar ele a olhar o que ele mesmo tinha feito, no mó orgulho da beleza daquilo. Afinal, quem que garantia que eu não ia ser boca-grande? Por que que ele não guardou só pra ele só? Não era melhor? Orgulho, titio! Ele me chamou porque achou bonito o que fez; tão bonito, que não deu conta de olhar sozinho e daí veio me chamar pra ajudar ele a olhar. E, nas que é, não tiro a razão dele: tinha sido bem feito, trampo limpo, sem vestígio nenhum; aquela tropa de pau no cu do mercadinho tudo se batendo, sem saber que que era feito dos crivo, e o Nego Pumba a essa altura já a uma certa, com as carteira tudo, mostrando pro bruxo dele, que era eu, e nós vá risada. Que que nós tinha?, quinze?, dezesseis? Caraio, titio, o tempo voa! Voa, e não perdoa ninguém, dando bem a morta. Só que se pá dava pra ter ido mais na manhosa com o Nego Pumba. Santo, eu, que não sou bobo, tô ligado que não tem nenhum, mas quem é que merece acabar que nem ele? Ô, na boa, não é querer pagar pau nem nada, mas o louco comia a bola, levava jeito com as mina, andava na estica, fazia rap pra Brown nenhum botar defeito, considerado às ganha na quebrada. E um palhaço passava vergonha perto daquele malandro: sempre tirando onda (até onda que não cabia tirar), sempre gargalhando, sempre fazendo gargalhar quem tava na volta. Agora, olha só o que que tinha sobrado do cara alegre e cheio de dente de anos atrás! Olha só o que que tinha sobrado do cara que me apresentou pro massa! Quando eu lembrei disso — que foi ele que me apresentou pro massa —, sem arreganho: me deu até um nó na garganta, me ardeu as narina, enchi os olho d’água; é claro que eu não ia abrir o berreiro ali, na frente dos nego, não ia pagar esse vale, mas ó, vou dar a morta: se tivesse jeito de eu me sumir dali pra ir ficar sozinho, num canto esquecido do mundão, já era, caiu a casa, perdeu o parceiro! Serinho, titio, não tenho vergonha nenhuma de falar; chorava mesmo; tem fita ruim demais de aturar, e eu penso até que a gente nem tem que aprender a aturar essas fita, porque aprender a aturar é aprender a fingir que não viu, a fingir que não aconteceu, a fingir que não doeu, quando que na verdade doeu sim, e não foi pouquinho. Tu tá é louco, meu titio!, como assim?, o Nego Pumba é meu primo, e a coroa dele é minha tia e minha madrinha, e a minha coroa é tia dele e madrinha dele, e, ô, é sangue do meu sangue que tá ali atirado, e se não me dá vontade de chorar, eu tenho mais é que ir pro inferno logo duma vez, sem resenha. Quando o pau no cu me apresentou pro massa, foi num Natal, eu acho, ou num Ano-Novo, agora não tenho certeza. Nas que é, ele é que decidiu que ia ir fumar um antes de saltar pruma festa no morro, e eu fui atrás só de peru. Daí, bolado e aceso o baseado, a fumaça indo pras estrela, o Nego Pumba vá puxão e prensada, daqui a pouco ele me pergunta “vai?”, já me esticando o bagulho, e eu respondo “lógico”, já pegando o bagulho da mão dele. Não tinha outra resposta que eu podia dar. Agora, não tô ligado se mudou, não tô ligado como é que anda, mas, naquele tempo, malandro do tamanho que eu tava e que não torrava o massa era motivo de chacota. Daí dei de mão no bagulho, mas é aquilo: o cu que não entrava uma agulha, achando que podia acontecer de no dia seguinte eu já tá rateando já, vendendo as coisa de dentro da baia pra comprar um baseado. Dei só um tapa pra controle e já devolvi o bagulho pro Nego Pumba, bem ligeiro. Nas que é, eu tentei devolver, porque ele não aceitou o totó. “Ah, ti fudê, pau no cu! Tá até pegando! Fuma esse caraio!”, disse ele. E daí eu fumei. E fumei às ganha. E não parei mais de fumar, depois daquilo. E foi o massa, sem mentira nenhuma, que salvou a minha vida, nos dia mais piçudo. E não teve baseado que eu acendi sem agradecer secretamente ao Nego Pumba por me apresentar pro bagulho. E daí agora ali tava ele, no farelo. E o que que eu podia fazer por ele, pelo meu primo, pelo sangue do meu sangue, pelo afilhado da minha coroa, pelo malandro que me apresentou pro massa, se nem das minha própria neurose eu andava conseguindo dar conta, nem torrando o massa, nem dando um raio, nem tomando um gelo, nem de jeito nenhum? Ele ficou felizão de me ver. Felizão! Jogou aquela cabeça cheia de cabelo lá pra trás, fechou os olho e gargalhou, abrindo bem a boca, que nem se quisesse abocanhar o céu inteiro com aquela gargalhada. “Ah, não, olha aí, meu, olha só! Tô fodido, agora! Chegou o meu bruxo, chegou o meu irmão!” Serinho, titio, o bicho ficou felizão afu! E tu pode até achar que eu tô viajando, mas pra mim aquela alegria toda era por causa de que as lembrança das nossas fita tudo pipocou na mente dele também, que nem na minha, e não pela oportunidade de me arrancar cincão pra derreter uma. Que ele ia me apertar, beleza, isso eu já tava ligado; e que eu, do meu lado, ia largar ele pifado, beleza, isso ele também já tava ligado; mas não, toda aquela alegria não era daí que vinha. Vinha era do lado ponta-firme do Nego Pumba, eu vou te dizer pra ti. Aquela porra daquela gargalhada gostosa que ele deu foi é de alívio; não o alívio de quem sabe que vai se salvar algum dia, não esse alívio, mas o alívio de quem salva pelo menos o passado, de quem salva pelo menos aquilo que o tempo já levou faz tempo, de quem vê brilhar de novo pelo menos a porra do tesouro da memória; o alívio de quem percebe que não tá louco, pelo menos não totalmente, e daí tira do melão qualquer dúvida sobre o sabor bem bom que a vida bem que já teve lá atrás, naqueles momento raro, cada vez mais distante, cada vez mais difícil de lembrar, cada vez mais difícil de acreditar, mas que agora ele tinha certeza que havero mesmo, só por causa de botar os olho em mim e sentir tudo gritar dentro dele. Abracei o Nego Pumba com força. E acho que, naquela hora ali, sem arreganho: eu preferia tá lá no fundão do abismo com ele do que nós tá assim, ele lá e eu cá. Depois do abraço, ele me olha e me diz: “Porra, vagabundo, e esse cavanha? Tu tá a cara do teu pai!”. E gargalha de novo, ainda mais aliviado. Pra mim, foi demais. Não deu. Acelerei o processo. Disse que tinha que saltar fora. Dei cincão na mão dele, nem esperei ele pedir. E disse pros nego que tava comigo que já era já, que eu não ia pros inferno porra nenhuma, que eu tinha uma fita de mil grau pra resolver que eu tinha esquecido, e daí saltei de cena, larguei fincado. Mas eu não fui pra baia não, meu titio. Eu fui é ficar sozinho, num canto esquecido do mundão.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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Este texto faz parte da Parêntese #41. Assine e tenha acesso a todos os textos da revista, além da versão em PDF e demais e-readers para você ler onde quiser.

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