Crônica

No escuro

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No escuro Foto: Ankit Singh /Unsplash
Você já deve ter percebido o quanto a iluminação é uma ferramenta de incentivo ao consumo. Meu primeiro emprego foi num shopping e, em seguida, a maior parte dos lugares onde trabalhei sempre tiveram uma forte luz branca para preencher todos os espaços do ambiente, sem lacunas para a dúvida: compro ou não compro. Drogaria é um ambiente visualmente cansativo de se trabalhar. Muita prateleira, muita frase imperativa, muito produto – pois dizer medicamento é contra a política do mercado. Quando chegava em casa depois de horas num lugar assim, a primeira coisa que eu não fazia era acender a luz. Quantas vezes eu deixei o abajur ligado e circulei pela casa movida pelas sombras e lembranças. Acontece que atualmente eu estou trabalhando no tal do home office, e a luz que me encandeia é esta mesmo, a da tela. Passo o dia lendo texto, editando frases boas, cortando umas ruins e buscando o inalcançável: a perfeição. Lá pelas cinco, seis da tarde, quando Porto Alegre começa a indecisão entre o laranja e o violeta, meus olhos não aguentam mais. Saio do quarto pra cozinha como uma sedenta por escuridão, abro a geladeira e fecho rápido pra fugir da sua claridade. Lavo uns tomates, uma cebola e uma abobrinha. Ainda no escuro tateio o fundo do armário em busca de uma panela e a tábua de madeira. Corto tudo sentindo o tamanho com os dedos. Um fio de óleo e a luz azul do fogão. Em alguns minutos o arroz que sobrou do almoço e alguns legumes viram janta. Quase de olhos fechados, eu como enquanto o dia vai embora. Aos poucos a escuridão joga suas sombras sobre o tapete, o sofá, os livros espalhados pelos cantos. Tenho vontade de escutar uma canção da Céu, mas a tela do celular vai estragar este momento com seu excesso de brilho. E então, ao terminar minha janta, a rua já está pronta para me receber no escuro. Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica e escritora. Já morou em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça. Hoje vive em Porto Alegre-RS, onde se divide entre crônicas, mestrado em psicologia social, edição da Revista Parêntese e os bares da Cidade Baixa. Seu primeiro título ”Aqui dentro” (Venas Abiertas, 2020).

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