Crônica

Notícias da Bahia

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Notícias da Bahia Foto: Isac Nóbrega/PR

Não há fotos no meu álbum de infância. Sequer há álbum de infância. A inundação da pequena casa que habitei, décadas atrás, afogou minhas memórias. Ainda assim, vejo com nitidez o olhar de um menino curioso, que olha com atenção pra quem lhe olha. O riso eterno de quem anseia pelo futuro desenhado com luz, como se o futuro transbordasse de uma 10×15 e fosse a sombra de um coqueiro e a brisa do mar.

Em outro canto e outro tempo, mas na mesma terra. Embora seja Verão, a conjunção de fatores põe em meus ouvidos os versos de Gregório de Mattos na voz de Caetano. Se assim eu pudesse dizer, diria que “Triste Bahia” é meu retrato de agora. Percebo, não é fácil encarar o retrato de agora. Reviro as lembranças tão antigas e tão presentes, as aflições vão e vêm. É assim. Meu corpo, marcado pelo oceano Atlântico, agora entra em crise também com o Pacífico.

Penso em meu corpo, na temperatura dos oceanos, e nas pessoas que vivem e sonham intermeadas pela insistente tentativa humana de domesticar a natureza no sul da Bahia e em tantos outros lugares. Todo o país pode ver: Notícias da Bahia. Bem lá no fundo estão as casas, ali, tão delicadas quanto às pessoas que nelas habitam. Habitavam. Por cima, as águas dos rios.

Trégua não é bem o que desejo. A meteorologista fala em depressão subtropical. Gostaria de acreditar que são tempos atípicos, mas tenho uma coletânea de histórias tristes pra contar. Enquanto o ponteiro gira no sentido horário, as pessoas cooperam e tentam juntas sair da lama. Esse movimento de libertação exige esforço. Vai além da importante e fundamental solidariedade que alguns humanos têm por outros da mesma espécie.

Tanto tempo depois, o menino que fui ressurge com olhos marejados, mas ainda curiosos. É que temos a habilidade de recuperar algo que julgávamos perdido. O riso, acho que lembro melhor, embora eterno, era contido. Sim, a timidez de quem caminha com cautela na inevitável direção do futuro. Como se diz, seguir em frente.

Gal, minha conterrânea, parece vir de um outro tempo pra me abraçar com sua voz. Ela atravessa o temporal na maior calmaria. Se aproxima cantando “Lágrimas Negras”. Lá no céu as pesadas nuvens ainda são de concreto. Suave é o manto colorido que ela traz e me recobre com camadas de serenidade.

“Belezas são coisas acesas por dentro/ Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”

Submersas estão as variadas coisas de uma vida, a própria vida. Foto de casal na parede. Cartas de amor? Itens pra um recomeço chegam às famílias baianas. Aqui e ali, vejo bem, o sol fissura o gris do céu profundo. A dor não é pra sempre, irrompe a certeza ao sentir o facho solar que toca minha pele.


Evanilton Gonçalves nasceu em Salvador, Bahia, onde reside. Participou, como escritor convidado, de diversos eventos nacionais e internacionais. Já teve contos publicados em diversas revistas e antologias dentro e fora do Brasil. Publica crônicas regularmente no jornal A Tarde. Editou, junto com o poeta Ricardo Aleixo, a revista de literatura Organismo nº 8. Publicou o livro de prosa curta Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S, 2017 / 2ª edição em 2019) e o romance O coração em outra América (Paralelo13S, 2021).

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