Crônica

O 403 e o 303

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O 403 e o 303

Recebemos uma multa do condomínio. Alguns vizinhos reclamaram do barulho no último sábado, mas não é só isso. Estamos sendo alvo, como já havia acontecido algumas vezes, de olho gordo. Inveja. Recalque. Isso mesmo. Algumas pessoas do prédio, e também fora dele, gostariam de participar da vida que se passa dentro do 403.

Não sem esforços, mas garanto que com toda naturalidade, Marcela e eu criamos uma rotina muito divertida, e as pessoas acabam querendo fazer parte disso. No último sábado recebemos três amigos em casa para beber uma cerveja e comer umas pizzas caseiras. Coisa simples, conversa, uma JBL e seis pessoas na sala. Não era exatamente uma aglomeração, mas veja bem, não foi como a nova vizinha do 303 julgou a situação. Ela se mudou com a mãe em julho, no ápice da nossa crise de identidade rotineira. Depois da bronca que foi abril e maio, junho e julho foi um período de encontrar pela casa as fichas que estavam caindo. ‘‘É, essa pandemia veio mesmo pra ficar’’. ‘‘Porra, acho que vamos ficar assim até o meio do ano que vem’.’ ‘‘Não aguento mais ficar dentro de casa e as ruas estão cheias de pessoas em desespero e ódio’’. ‘‘Não é seguro sair’’. ‘‘Não parece seguro ficar só aqui’’.

A nova vizinha mudou-se e não se incomodou em nada com nosso silêncio. Não tocou aqui em casa pra perguntar se estávamos bem em meio a todo aquele vazio. Se estávamos vivas. Não procurou a imobiliária. Nada. Nenhuma consideração. Vivemos assim umas ignorando a existência das outras até o fim da fatídica quarentena do nosso 403. Acontece que, trabalhando todo dia, quarentena mesmo eu nunca fiz. Mas depois de quase pegar o tal vírus em setembro eu entrei num estado inicial de paranoia aguda que foi logo substituído por um foda-se enorme. Com algumas restrições e gestos sanitários que se naturalizaram de vez eu entrei em outubro com uma rotina que parecia muito com uma nova vida normal. Uma vida normal pandêmica que englobava trabalhar com duas máscaras e ver pessoas selecionadas, quase que uma por vez, na rua. Uma nova era de 2020 e uma nova relação presencial com o mundo.

Mas aquilo mostrou rapidinho sua cara de loucura. A rua estava longe de ter se tornado um local seguro. Comer um xis na calçada da Perimetral ou beber uma polar na república só era possível com distanciamento social das mesas. Não deu três semanas todo mundo parece que encontrou o mesmo foda-se que eu, ou simplesmente nunca tiveram uma fase de paranoia. Não havia mais horário tranquilo nos meus bares. Os outros estavam se aproximando cada vez mais da minha mesa sem serem convidados. De uma forma sem controle, o que era uma cerveja com um amigo na sinuca quase vazia se tornou mais que uma rebeldia, aquilo tinha cheiro de suicídio coletivo. Não podíamos continuar na rua. Voltamos pra dentro de casa. De novo. Porém, uma vez provado o sabor da liberdade após um longo período de enclausuramento, não tinha condições psicológicas ou estrutura física para me trancar de novo dentro da minha cabeça. Aquela porteira do reencontro social foi escancarada e era impossível voltar atrás.

Na nossa primeira festinha em casa, ou seja, Marcela, eu e suas duas irmãs de São Paulo que vieram fazer uma visita, acredito que a vizinha não reclamou porque deve ter ficado pasma dentro de sua bolha quarentênica. Na segunda festinha, a mesma galera acrescida da então presença ilustre de meu amado irmão, a vizinha deve ter pensado ser um surto coletivo temporário com sintomas de curto prazo. Logo logo essa onda de sede de vida passa e o pessoal do 403 se aquieta. Na terceira festinha, desta vez a mesma galera anterior com a soma de decibéis da voz e sotaque do novo namorado da Marcela, deve ter sido seu voto de confiança na não-longevidade de nosso sentimento. Vejo-a boquiaberta sentada em sua sala ordenada com o olhar perdido no vis-à-vis da janela da lavanderia do 307 do prédio ao lado. Uma porção de pensamentos a povoa e ela desorientada não consegue se decidir se reclama ou não.

Por fim, não foi daquela vez. E nós, em nossa bolha alegre de reconciliação com 2020 e suas tragédias mundiais, na ausência de reclamações, continuamos. Não nos importamos com o silêncio da vizinha. Não pensamos se ela estava bem, se estava viva. Não ligamos na imobiliária para verificarem os níveis hormonais de alegria no 303. Nenhuma consideração. Continuamos nos ignorando em silêncio. As irmãs da Marcela foram embora. Demos uma acalmada. O meu irmão foi embora. Baixamos mais ainda a bola. A vida parecia querer voltar à apatia de agosto quando numa sexta-feira, voltando do trabalho, algum espírito maligno se apoderou do meu corpo na altura da Borges com a Fernando Machado.

Cheguei em casa destinada a ultrapassar todos os limites. O único a ser respeitado seria a porta do 403. Todo mundo entra e ninguém sai, essa foi a ideia soprada em meus ouvidos pelo capiroto. Um amigo virou dois, que chamou o terceiro. Comigo e o casal risadinha, já éramos seis. Não sei se você faz ideia, mas basta duas pessoas bem intencionadas pra fazer uma festa barulhenta. Eu vou repetir, éramos seis. Seis indivíduos muito bem intencionados a passar dos limites e extravasar toda aquela alegria reprimida por meses e tão moralmente inadequada. Seis corações sedentos de loucurada, cada um com uma saudade diferente da antiga vida, buscando se passar para ressignificar. Cada um com um desejo diferente e novo em ritos de passagem distintos. Unidos pela vida que pulsa no 403.A vida pulsou tanto que invadiu o 303. Aquele som de vida. Aqueles passos de vida. Toda aquela revolução saiu pela janela, foi pelo ar contaminado de doença e morte e entrou. Foi denso e barulhento, quase bloqueando o vis-à-vis, a vizinha teve a sensação de conseguir tocar aquela vida. Recuou assustada. Mas a vida do 403 era imensa e sem limites, a uma certa altura não precisava mais da janela, ela se infiltrou pelo teto e foi pingar sobre a cabeça dela. Indefesa. Toda aquela vida a retirou de seu estado de inércia. Tomou consciência que após um longo período de enclausuramento, uma vez saboreada, não é possível se negar a liberdade. Provou e queria mais, queria e não sabia como, queria e não sabia o quê. Queria e não sabia querer aquela vida e liberdade. O 303 tomou o telefone e reclamou na imobiliária o barulho de vida que escorria por suas paredes vindo do 403. Enfim saíamos do estado de ignorância.


Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica vacinadora, e depois de ter morado em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça, hoje vive em Porto Alegre. Lançou “Aqui dentro” pela editora Venas Abiertas. Disponível pelo Instagram da própria autora: @nathalliaprotazio.escritora

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