Crônica | José Falero

O absurdo assado na brasa e metido no palito

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O absurdo assado na brasa e metido no palito

Fiquei delirando naquele rato fantasiado de cowboy. Chapelão, óculos escuro, bigodão bem branco, camisa de manga comprida quadriculada, calça de brim apertadinha, punheteira no ombro, na maior marra. Um Xerife Wood versão terceira idade. Que que era aquilo? Tava à paisana, tava disfarçado ou o quê? Que viagem era aquela? Será que era vestido daquele jeito que ele corria atrás dos malandro nas boca? Ou será que aquele véio só tinha só um cargo administrativo em alguma delegacia da Civil? Podia ser… Se pá a dele era só ficar sentado atrás duma mesa, lendo papelada o dia inteiro, e, por falta de pessoal ou sei lá, botaro ele na função e ele teve que brotar na vila, com aquela punheteira no ombro. Nesse caso, então, aquele devia de ser o jeito dele de se vestir ao natural. Mas não, não, não podia ser! Impossível! Eu me negava a acreditar que alguém ia se vestir daquele jeito longe da época das festa junina. Só se o cara fosse lá do Centro-Oeste.

Ele não era o único representante da Lei que tava ali. Na real, a vila tava tomada de porco e de rato. Várias viatura estacionada, vários homem e várias mulher de arma em punho, uns de farda, outros sem farda, uns de colete, outros sem colete, uma pá de gente da Lei. Só que, agora, tentando lembrar, só me vem mesmo no melão o Xerife Wood versão terceira idade. Não consigo lembrar como é que era os outro.

[Continua...]

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Fiquei delirando naquele rato fantasiado de cowboy. Chapelão, óculos escuro, bigodão bem branco, camisa de manga comprida quadriculada, calça de brim apertadinha, punheteira no ombro, na maior marra. Um Xerife Wood versão terceira idade. Que que era aquilo? Tava à paisana, tava disfarçado ou o quê? Que viagem era aquela? Será que era vestido daquele jeito que ele corria atrás dos malandro nas boca? Ou será que aquele véio só tinha só um cargo administrativo em alguma delegacia da Civil? Podia ser… Se pá a dele era só ficar sentado atrás duma mesa, lendo papelada o dia inteiro, e, por falta de pessoal ou sei lá, botaro ele na função e ele teve que brotar na vila, com aquela punheteira no ombro. Nesse caso, então, aquele devia de ser o jeito dele de se vestir ao natural. Mas não, não, não podia ser! Impossível! Eu me negava a acreditar que alguém ia se vestir daquele jeito longe da época das festa junina. Só se o cara fosse lá do Centro-Oeste.

Ele não era o único representante da Lei que tava ali. Na real, a vila tava tomada de porco e de rato. Várias viatura estacionada, vários homem e várias mulher de arma em punho, uns de farda, outros sem farda, uns de colete, outros sem colete, uma pá de gente da Lei. Só que, agora, tentando lembrar, só me vem mesmo no melão o Xerife Wood versão terceira idade. Não consigo lembrar como é que era os outro.

Tem um bagulho que se pá eu devia ter avisado antes de começar a contar essa história. Não vai se perder, sangue bom: aqui, nós tamo no fim, tá ligado? Não é sempre que faz sentido desenrolar os acontecido do começo até o final. Tem vez que é melhor fazer o contrário, porque a única introdução possível daria mó spoiler. Então, tá aí: foi assim que tudo acabou: com a vila tomada de porco e de rato e um montão de malandro tudo preso. Um final feliz, dependendo do ponto de vista. E dependendo do grau do binóculo, também. Em todo caso, o fim foi esse.

Agora, avançando um pouco em direção ao princípio, eu posso contar que os porco e os rato tomaro conta da vila e prendero aqueles malandro tudo foi por causa que a bronca deles tinha passado dos limite. Era dois grupo rival, que vinha se tirotiando fazia já vários e vários mês. Eles tava vá atentado uns contra os outros, tudo planejado direitinho, assim, de tramar a morte uns dos outros com toda a calma, em algum boteco, tomando cerveja, dando raio e jogando sinuca, pra depois ir lá e tentar mesmo botar a maldade na prática. Volta e meia, então, acontecia dessas, de três ou quatro tentando matar um na saída do baile, de quatro ou cinco tentando matar outro no futebol. Ou então, sem plano nem nada, eles trocava tiro quando se pechava por aí.

Mas nunca morria ninguém. Era impressionante. Tiroteio de compadre. Tiro e tiro e tiro uns nos outros, mil e um atentado, e nunca morria ninguém. Eu lembro até que o Dorme Sujo, debochando, levantou a possibilidade de ser tudo bala de festim.

— Pensa bem, mano — ele argumentou. — Não tem outra explicação. Caraio, como que pode os cara dar tanto tiro um no outro e nunca que morre ninguém, esse tempo todo?

O Sardinha deu risada, mas discordou:

— Ué, o Barriga de Aluguel tomou um de raspão no braço, não tomou? Só aí já cai por terra a tua teoria, já.

— Ah, isso é o que ele diz! Vai ver, só lanhou o braço no maricá e vem pagar essa.

— Mais incrível de tudo foi quando dero aquele atentado na casa do Fandangos — lembrou o Saca-Rolhas. — Seis malandro, mano! Seis! Não era dois, nem três. Era seis! Tudo de pistola, e o Fandangos avulso na baia, de samba-canção na cozinha, só com aquele 32 enferrujado do pai dele. Como que não conseguiro matar o Fandangos, veio? Como? E outra: aquele beco parece mais é uma porra dum canil; daí, uma pá de cachorro, tudo latindo na volta dos malandro, anojando, anojando, anojando, e a bala pegando, aquela coisa toda, e, no fim, nem os cachorro levaro tiro.

— Nas que é, se pá os cachorro também era de festim, porque, pelo que eu me lembre, ninguém saiu mordido.

Desse dia do atentado contra o Fandangos, o que eu lembro mais claramente é da Dona Vicentina passando mal no armazém, acabada, chorando, sofrendo de empatia aguda, depois que o bicho pegou. Dei um pé lá pra pegar uma granadinha, e tavam empinando um copo de água com açúcar nos beiço dela. Pelo que eu entendi das explicação que ela soluçou depois, ela tava abalada porque tinha passado pelo Maiquinho, o piá do Fandangos, durante o tiroteio. Naquela época o Maiquinho devia tá com, sei lá, nove ano, dez ano. E, segundo a Dona Vicentina, durante o tiroteio, o guri, que tava voltando da aula e nem pôde ir pra casa, por causa dos tiro, ficou desesperado quando soube que era o pai dele que tavam tentando matar lá dentro do beco. Ele passou por ela, correndo e chorando, e ela perguntou aonde que ele ia, e ele respondeu assim:

— Eu tenho que ir lá chamar os aliado do meu coroa, tia, porque os contra tão tentando ver a mão dele, será que a senhora não percebeu? Dá licença!

Ver um piá daquele tamanho naquela situação é demais pra muita gente. O mal-estar da Dona Vicentina tinha sua razão de ser. Depois da água com açúcar e das explicação, ela ficou balançando o melão e repetindo:

— Que inferno, isto daqui! Que inferno, isto daqui! Que inferno, isto daqui!

E é claro que, na mesma hora, a voz do maior poeta brasileiro de todos os tempos ecoou dentro da minha mente:

Um pedaço do inferno, aqui é

Onde eu estou

Até o IBGE passou aqui

E nunca mais voltou

A tia do armazém fez um carinho no ombro da Dona Vicentina e disse:

— A senhora fica tranquila, viu?, que Deus não dorme, não. Deus tá vendo tudo isso, e logo, logo vai enviar Seu Filho, pra que seja feita a Sua justiça. E daí tudo vai ficar bem.

Hoje, eu fico pensando se, ao dizer aquilo, a tia do armazém por acaso podia imaginar que, no futuro, pra fazer valer Sua justiça, Deus, em vez de enviar Seu Filho, enviaria um Xerife Wood versão terceira idade. Seja do jeito que for, se ela, naquele momento, não podia imaginar o futuro, eu, agora, posso muito bem prever o passado. Porque eu lembro muito bem como aquela guerra toda tinha começado. Fui testemunha ocular do primeiro pega-pra-capar. Eu e um bruxo meu, um mano da melhor qualidade, que, diga-se de passagem, hoje já virou estatística e deixa uma saudade sem tamanho no coração duma pá de gente.

Nós tava entocado, jogando um game e comendo batata frita, quando ouvimo uma gritaria lá fora. Só podia ser bolo, claro, mas a gente correu pra ver de perto, porque a gente não tinha como adivinhar que ia acabar em tiro como acabou. Quando a gente chegou lá, o que a gente viu a princípio foi só seis ou sete cara espancando um coitado, na escuridão, na ponta do beco, embaixo do poste que a lâmpada nunca funcionou. E eles ia deixar o malandro vivo. Tanto que, depois de afofar ele bastante, dissero:

— Vai pra baia agora, pau no cu!

Mas esse malandro, que morava no fundão daquele beco, preferiu não ir pra casa. Saiu mancando pra outro lado e disse:

— Não, não, tá sereno, tá sereno, eu não vou pra baia, não, vou dar outro rolê.

O intento dele tava mais do que na cara: ia chamar os parceiro, pra se vingar da surra que tinha acabado de levar. Só que, daí, um dos malandro que quebrou os corno dele puxou um oitão da cintura.

— Ah, é? Tu não vai pra baia?

Ele tentou reformular a estratégia:

— Tá bom, tá bom, eu vou pra baia, eu vou pra baia, eu vou pra baia!

Mas já era tarde.

Na escuridão dos baile, tem aquele efeito massa dos flash, não tem? Tá tudo escuro, e daí uma luz fica piscando. E cada vez que a luz pisca, a gente vê as pessoa congelada numa posição, daí a luz apaga e as pessoa some no escuro, e daí a luz pisca de novo e a gente vê as pessoa congelada noutra posição, e assim vai indo, não é? Naquele dia, foi igual. O cara do oitão correu pra cima do malandro que tinha acabado de apanhar e sentou-lhe o dedo a queima-roupa. Sem mentira nenhuma: descarregou o oitão no infeliz a um metro de distância. E a cada sapeco, era um flash. E a cada flash, era um “ai!”. E a cada “ai!”, brilhava a figura congelada do maluco, cada vez numa posição diferente, todo retorcido de dor. Foi igualzinho acontece no baile: aparecia, desaparecia, aparecia, desaparecia, a cada tiro que tomava.

Mas ele não morreu, não. Tiro não é igual no cinema, que a pessoa toma um no peito e voa longe e cai dura. Não é assim. O cara ficou andando pra cima e pra baixo um tempão, todo furado, pedindo ajuda pras pessoa que aparecero nos portão dos pátio pra fofocar:

— Ô, na boa, alguém que tem carro, me leva pro hospital! Ô, na boa, se não, eu vou morrer! Ou então me chama uma ambulância aí, pelo amor de Deus!

E ele não só pedia ajuda, como também comentava o ocorrido, tentando angariar apoio:

— Ceis viro? Pra que isso? Eu disse que ia pra baia, ceis viro? Então, pra que isso?

E aí está: como eu disse antes, esse foi o primeiro pega-pra-capar da história toda. Foi depois dessa noite que se formou os dois grupo rival que ia passar vários mês a fio aterrorizando a vila com troca de tiro em tudo que é canto, a qualquer hora do dia ou da noite, quando menos se esperava, e que mais além ainda ia acabar tudinho preso pelo Xerife Wood versão terceira idade e mais uma pá de porco e de rato. Dois grupo rival mesmo, inimigo à vera: dum lado, os amigo e os parente do cara baleado nesse primeiro pega-pra-capar; do outro, os amigo e os parente do cara que baleou.

E hoje, quando eu paro pra pensar nessa história, mal consigo acreditar que tudo tenha começado por causa dum motivo tão absurdamente imbecil e bizarro. Mal consigo acreditar que a razão de espancarem e balearem aquele cara, naquele primeiro pega-pra-capar, tenha sido uma mera suspeita. E mal consigo acreditar, muito menos, que essa suspeita era a de que ele estaria dando sumiço nos gato e nos cachorro da vila pra fazer os churrasquinho que vendia lá no Centro.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019). Trabalha como auxiliar de gesseiro para não morrer de fome, e toca cavaquinho para não morrer de tristeza.

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