Crônica

O fruto e o ventre

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O fruto e o ventre Uma expressão da língua portuguesa que sempre achei engraçada é “bendito fruto”, que costuma designar uma única pessoa do gênero masculino em um grupo feminino. Com menos frequência, por derivação, também serve para denominar um objeto único entre outros iguais entre si, como um prato diferente do conjunto. E ainda deu origem à variação “bendito ao fruto”, que imagino vir da confusão sonora com “bendito é o fruto”, e da mesma forma sobreviveu sem questionamentos: que bendito fruto é esse? Em tempos em que masculino e feminino tornaram-se simplistas para classificar gêneros, a expressão também caiu em desuso. Imagino que ninguém com menos de, sei lá, 40, ainda use; talvez nem reconheça. Mas é curioso que tenha durado tanto tempo na língua e passado por gerações, inquestionada. Pelo menos, desde que, ainda criança, percebi sua estranheza, lembro de apontá-la para muitas pessoas, que, ou não perceberam, ou não acharam tão estranho assim para se importar. E os bendito-frutos continuaram a ser assim classificados.Tento de novo. Sua origem é o “bendito fruto entre as mulheres” da Ave Maria. Só que esse verso não existe. O anjo Gabriel anuncia a Maria que ela tem uma ótima reputação e foi selecionada, entre todas as mulheres, para dar à luz o próprio filho de Deus: “bendita és tu entre as mulheres / bendito é o fruto de teu ventre, Jesus”. O bendito fruto migrou para o verso anterior e acomodou-se entre as mulheres para ganhar seu próprio significado na língua. Tem até uma canção do Jorge Ben que diz “eu quero ser o bendito fruto de você”. Imagino que o sentido é o mesmo do uso geral e ele queria ser o único homem no universo feminino dela, e não queria ser seu filho, em seu ventre, o próprio Jesus. Ou vai que queria. Mas ele é o Jorge Ben, uma espécie de Deus também. O resto dos bendito-frutos provavelmente pense nas mulheres no plural mesmo. E a expressão seguiu firme até depois que o Ben já tinha virado Ben Jor, em uma outra migração dentro de frase, dessa vez espelhando a sílaba Ben do início no fim, por motivos mágicos. Há também uma comédia de 2004 chamada Bendito Fruto e dirigida por Sérgio Goldenberg, em que Otávio Augusto é o bendito fruto entre as mulheres Vera Holtz e Zezeh Barbosa. O mais curioso para mim é o fato de a Ave Maria ser tão popular em um país leigo só oficialmente, que já louvou a Deus nas notas de dinheiro, e que reza e fala em Deus até em reunião ministerial e em reunião de quadrilha, antes de jogo de futebol e antes de show do Jorge Ben Jor, e mesmo entre pessoas de outros credos, ou não religiosas, onde provavelmente todo mundo já rezou em voz alta ou ouviu alguém rezar, e isso não ter levado ninguém a pensar que aquele maldito bendito fruto nunca esteve entre as mulheres, mas no ventre de uma só. Pensando melhor, acho até que é um […]

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Uma expressão da língua portuguesa que sempre achei engraçada é “bendito fruto”, que costuma designar uma única pessoa do gênero masculino em um grupo feminino. Com menos frequência, por derivação, também serve para denominar um objeto único entre outros iguais entre si, como um prato diferente do conjunto. E ainda deu origem à variação “bendito ao fruto”, que imagino vir da confusão sonora com “bendito é o fruto”, e da mesma forma sobreviveu sem questionamentos: que bendito fruto é esse? Em tempos em que masculino e feminino tornaram-se simplistas para classificar gêneros, a expressão também caiu em desuso. Imagino que ninguém com menos de, sei lá, 40, ainda use; talvez nem reconheça. Mas é curioso que tenha durado tanto tempo na língua e passado por gerações, inquestionada. Pelo menos, desde que, ainda criança, percebi sua estranheza, lembro de apontá-la para muitas pessoas, que, ou não perceberam, ou não acharam tão estranho assim para se importar. E os bendito-frutos continuaram a ser assim classificados.Tento de novo. Sua origem é o “bendito fruto entre as mulheres” da Ave Maria. Só que esse verso não existe. O anjo Gabriel anuncia a Maria que ela tem uma ótima reputação e foi selecionada, entre todas as mulheres, para dar à luz o próprio filho de Deus: “bendita és tu entre as mulheres / bendito é o fruto de teu ventre, Jesus”. O bendito fruto migrou para o verso anterior e acomodou-se entre as mulheres para ganhar seu próprio significado na língua. Tem até uma canção do Jorge Ben que diz “eu quero ser o bendito fruto de você”. Imagino que o sentido é o mesmo do uso geral e ele queria ser o único homem no universo feminino dela, e não queria ser seu filho, em seu ventre, o próprio Jesus. Ou vai que queria. Mas ele é o Jorge Ben, uma espécie de Deus também. O resto dos bendito-frutos provavelmente pense nas mulheres no plural mesmo. E a expressão seguiu firme até depois que o Ben já tinha virado Ben Jor, em uma outra migração dentro de frase, dessa vez espelhando a sílaba Ben do início no fim, por motivos mágicos. Há também uma comédia de 2004 chamada Bendito Fruto e dirigida por Sérgio Goldenberg, em que Otávio Augusto é o bendito fruto entre as mulheres Vera Holtz e Zezeh Barbosa. O mais curioso para mim é o fato de a Ave Maria ser tão popular em um país leigo só oficialmente, que já louvou a Deus nas notas de dinheiro, e que reza e fala em Deus até em reunião ministerial e em reunião de quadrilha, antes de jogo de futebol e antes de show do Jorge Ben Jor, e mesmo entre pessoas de outros credos, ou não religiosas, onde provavelmente todo mundo já rezou em voz alta ou ouviu alguém rezar, e isso não ter levado ninguém a pensar que aquele maldito bendito fruto nunca esteve entre as mulheres, mas no ventre de uma só. Pensando melhor, acho até que é um […]

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