Crônica

O pá da palavra

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O pá da palavra

Quando eu ia completar treze anos, meu pai resolveu me presentear com um revólver. Foi tão estranho quanto parece, para um guri de vida totalmente urbana. Ainda uns dias antes, eu usava na cinta um de espoleta. Um Xerife (cano médio), um Agente Federal (cano curto) ou um Fúria (meu Deus, de espoleta plástica e design faroeste!) eram máquinas desejadas e faziam qualquer outro brinquedo que simulasse uma arma igualar-se, humilhado, ao gesto primeiro, pueril, de “atirar” com um graveto ou pior: com os dedos. O peso, a coronha ergonômica, o frio do metal… o barulho do tiro. Que beleza. 

Quando foi ensinar o manejo do presente, o velho encontrou (sempre encontrava) uma forma popular, crioula e extremamente sintética de falar de algo enorme – neste caso, a distância abismal que medeia entre a fantasia e o real em um terreno como esse, ou a que transitamos entre o mundo infantil e o adulto. E disse: “com este aqui não tem isso de ‘pá!!! Tê matei.’” (Vai esse circunflexo porque não tem sentido pensar essa frase sem sotaque gaúcho.)

Não há mais brinquedo, com “este aqui” (o vinte-e-doizinho Rossi que ele escolhera por caber na minha mão ainda pequena e que agora sua manopla me alcançava); não haverá, com “este aqui”, necessidade de fazer o “pá!!!” com a voz ou de com ela comandar a morte do inimigo e esperar que ele se resigne (sim, porque o alvejado sempre poderia, usando aquele pretérito imperfeito de brincadeira de criança, inconformar-se e dizer “Foi de raspão! Aí eu pegava a minha pistola e atirava bem no meio da tua testa!”).

Pulo uns cinco anos e assisto pela primeira vez ao Monty Phyton, os doidos caçando o Cálice Sagrado. Posso falar da longa viagem a cavalo simulada só no andar do cavaleiro e – olha o “pá!!!” aí – no ruído de galope que o escudeiro produz com dois meios-cocos. Mas voltemos à porrada, a violência, a morte e o aniquilamento. Quem rolou e rola de rir com os Cavaleiros que dizem Ni? Eu rolo. Um momento de terror; um cavaleiro gigantesco que provoca sofrimento horrível quando diz a palavra “ni”. Nonsense total. 

Pulo muitíssimo, agora; décadas, ao longo das quais assisti e participei de construções delicadas e lutas cruas, e o contrário. Chego a estes nossos dias de ver, viver e ouvir terrores que não imaginaria. Não me dediquei às armas – à exceção da carabina de pressão com que faço minhas proezas, alvejando tampinhas e palitos sob a torcida de preás e passarinhos que já sabem que eu não faria ou diria nada que lhes causasse sofrimento. 

E me vejo, nesta altura da vida do país e deste escrito, lutando contra o lugar-comum. Não quereria recorrer ao evidente de falar sobre a arma da palavra e do gesto, compará-las à arma estrita. Mas é disso que se trata. 

Vários desconcertos nos atropelaram nos últimos tempos. Tenho observado, por exemplo, que o texto surreal jamais seria associado à direita – que, ainda que sempre tenha alistado ou produzido figuras ridículas, parecia caracterizar-se por posturas canônicas, caretas. Raul Seixas ou os tropicalistas, por exemplo: determinados gestos e textos, pelo sabor questionador do absurdo, eram justamente associados a uma posição libertária. A afirmação de disparates em contraposição aos conceitos mais básicos de qualquer campo – da astronomia à política, à biologia, à antropologia, à História –  ou diretamente ao bom senso, no que diz respeito à postura pública, tornou-se, agora, um sinal distintivo de uma extrema-direita. A irreverência do “palavrão” talvez também corrobore essa ideia de inversão: um bom esquerdista ousado era quem evocava o sexo e o sexual em suas falas. De alguma forma estranha, porque nada alternativa, vivemos um “faz o que tu queres, porque é tudo da lei!” Mas como? Um governo conservador não é aquele que limita, dita, comanda, engessa, formata, dirige o comportamento individual ou de pequenos grupos, lá na “ponta”?

Aí vai o grande desconcerto. Os recentes governos populares parecem ter obtido muito mais alguma espécie de “controle” sobre boa parte dos cidadãos. Do contrário, onde estavam, nesses períodos, as posições radicais e bizarras que pululam agora; onde estava – quieto – quem as vocifera com orgulho? 

Enquanto isso e ao contrário, o governo conservador obteve uma atitude favorável a seu discurso sem exercer um controle direto (que de resto tenho certeza que adoraria exercer, se e quando pudesse). Ainda na campanha de 2018, um sujeito atenta a tiros contra trabalhadores rurais e diz “agora eles não são mais sem-terra; são vagabundos!” Algo o liberara. Como não estaríamos pasmados, se repetimos a vida inteira que obtemos politização e adesão militante por meio da palavra e de nosso arsenal simbólico… e que os caras do outro lado o fazem pela força e a opressão? Pois sem tocar na estrutura democrática mínima e mesmo sem o envolvimento direto da classe política dirigente, eles exerceram (ai, duro paradoxo…) uma forma de liberação de quem os segue; com isso, obtiveram a reprodução de seu ponto de vista e a adesão política pelo discurso e pelos símbolos. 

Falemos de um destes. Tive uma sensação dolorosa (a maioria de nós, por sorte), Esses tempos, quando virou notícia que pessoas privilegiadas se cadastraram para receber o auxílio emergencial. Ao ver a foto em que uma moça (como tanta gente, agora por azar) faz o gesto dos dedos simulando uma arma, pensei (e é aqui que tento dizer algo que supere o lugar-comum, o evidente): “Pode-se assaltar com essa arma. Pode-se roubar ameaçando com um dedo”. Pensei que a mesma arma, tão distribuída – e é uma expressa prioridade, a de armar os seguidores –, tem matado muito. Perdi, eu, agora, a dimensão, a circunscrição, o desenho do simbólico e do real; do lúdico e do perverso; do ruído com os lábios e o disparo. Sou artista; sempre gostei de subverter essas cercas. Mas não era dessa forma. Não é. Não pode ser e não será assim. Os Cavaleiros que Dizem Ni são uma engraçada metáfora, e ela é poderosa e nos pertence. Quem sabe, quem é do ramo, “cura de palavra”, não é mesmo? Pois os cavaleiros matam de palavra. O gesto infantil não pode matar; crianças simulam e fantasiam, desde sempre; desde o tempo em que, sei lá, jamais ocorreria a alguém celebrar seu próprio “líder” chamando-o “mito”. A palavra não é isso. Há que conhecer pelo cheiro o cão-palavra para saber se morde… ou ladra, nada mais.  

Gente armada de palavra e municiada de símbolos terá de buscá-los de volta a ambos. Terá de recuperá-los e, uma vez a arma azeitada, carregadita como a poesia de Celaya, munir-se de precisão meticulosa, enérgica, comovida, responsável, para por-se diante do alvo, apontar bem entre seus olhos maus e… “pá!”


Demétrio de Freitas Xavier é cantor, violonista, intérprete da obra de Atahualpa Yupanqui, e radialista, que manteve por muitos anos o programa “Cantos do sul da terra”. 

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