Pós Covid
De repente, acordei sem sentir o cheiro do café. Em seguida, o almoço se transformou num algodão molhado. Mesmo trivacinada, eu estava com Covid, a doença bandida que roubou de mim os prazeres de comer e beber.
Nosso repertório de memórias olfativas é parte do que somos. As lembranças são feitas de amores, cores, sons, aromas e sabores; sem os dois últimos as referências ficam capengas e ficamos sem chão. A gente só se dá conta disso quando perde o olfato e o paladar, como aconteceu comigo há cerca de um mês, quando passei a viver num planeta inodoro e insípido.
Toda a construção de recordações, feita ao longo da vida, desapareceu. Não imagino viver sempre sem sentir os cheiros que evocam a infância, como os dos doces da vó, da banana amassada com canela da mãe, e o da casa sendo encerada. O que fazer sem os odores que foram se acumulando ao longo da vida, trazendo boas lembranças, como o perfume das mimosas no aniversário da mãe, marcando o frio do inverno? Ou o das flores dos cinamomos, trazendo a primavera? E o da terra molhada pela primeira chuva de verão? Como viver sem as morrinhas, como a do suor depois de uma grande caminhada, do limão estragado e do rastro da barata deixado num copo? Como ficar sem saber da necessidade urgente de um banho?
[Continua...]