Relato de viagem

A orgástica Santo Amaro

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A orgástica Santo Amaro

Em alguns lugares do Rio Grande do Sul, a travessia de um município a outro, quando separados por via fluvial, ainda é feita por balsas. Comuns antigamente, foram rareando com a complexificação rodoviária, com a construção de pontes. Uma das últimas desativadas, em 2016, foi a que ligava os municípios de Muçum e de Santa Tereza, atravessando o rio Taquari. Entre Rio Grande e São José do Norte, entre Nova Pádua e Nova Roma do Sul o transporte ainda existe. Os atuais aparatos estão léguas distantes daqueles utilizados no século XIX, mas, mesmo assim, experimentá-los é uma imersão no passado.

Ao visitar a Triunfo histórica, chão primevo do escritor Qorpo-Santo (1829-1883) – achego que resultou em um pequeno ensaio na Parêntese nº 32 -, hesitei em tomar as balsas que levam ou para General Câmara ou para São Jerônimo, do outro lado do Jacuí. Tornei à casa com a sensação de uma falta. Razão para retornar. 

Não correr – para ver o máximo no menor tempo possível – tem sido opção em viagens maiores. Desprezo o turismo da pressa, aquele que faz do espaço físico uma sucessão rápida de imagens à semelhança do que se vive na internet. Evidentemente, é uma opção funcional para quem prevê que não vai regressar. Para os entornos, essa necessidade inexiste, embora o ritmo frenético seja uma formatação e praticamente se autoexecute.

Abrindo aspas para o turistar, eleito como uma das melhores terapias, deixo dito da desconfiança sobre essa receita replicada. É cristalino o interesse do mercado em lucrar. Uma das vendas mais usuais é o combo viagem-cultura (vá com a mala vazia e volte com ela cheia de conhecimento!), como se as pessoas que sapateiam por aí incorporassem os saberes por transitar onde a história se deu. Hilário, não menos do que o ministro da Cultura, Mário Frias, circulando a esmo por um museu. As estratégias de marketing são excelentes, capciosas, incrustam-se no imaginário. Por isso pessoas que não podem, por menor poder aquisitivo ou algum outro fator, se creem infelizes – na impossibilidade de postar fotos no Instagram. 

Por outro lado, sair e conhecer outros horizontes, sim, pode ser muito prazeroso. Valorizado em função da pandemia, tornou-se mais frequente o turismo individual, de família, de carro, até locais próximos, antes desconsiderados. Com surpreendentes resultados. Os empreendedores já farejaram. 

Há poucos dias, na estranha situação de férias em tempos de Covid, segui, no Corsa 95 (um velhinho querendo viver pra sempre), até Santo Amaro. Distrito histórico de General Câmara, município 90 km distante de Porto Alegre, uma relíquia no estado. Fundado no século XVIII, ocupado por açorianos, mantém um quê de vila colonial. Nos primórdios, por volta de 1737, sediou um fortim, entreposto para a segurança, suporte para o avanço em direção ao oeste – para Rio Pardo e para a ocupação total do Continente de São Pedro.

Antiga residência do escrivão e delegado de polícia Antônio Damasceno.

Uma colina ladeada pelo Jacuí. No topo, uma praça retangular. A igreja, finalizada em 1787, ocupa o lado ao sul. No alto e central, indica que a religiosidade funcionava como um dos eixos da comunidade, embora se saiba que, no RS, pela distância entre os pequenos povoados, pela ausência de religiosos em número suficiente, por os homens pensarem que era coisa de mulher e, depois, pela disputa com o ideal laico, especialmente com os maçons, essa dominação não tenha sido fácil como cercamento de campo de cordeiros.

A maior parte da praça é composta por gramado. Árvores fazem os limites com as quatro ruas, que, por sua vez, são conformadas, pelo outro lado, por casas e casarões antigos enfileirados, muitos carecendo de reformas. Aos fundos da igreja, a edificação em que nasceu José Gomes de Vasconcelos Jardim (1773 – 1854), médico prático, militar e farroupilha que se tornou presidente da República Rio-Grandense depois da prisão de Bento Gonçalves (1788-1847), em 1836. Toda essa história foi vilipendiadíssima em termos de honestidade intelectual, mas, sim, é constituinte dos gaúchos, mesmo que uma investida de elites interessadas na descentralização do poder. 

O telhado (ainda íntegro em fotos de 2015) ruiu na parte central. Janelas estão escancaradas para fantasmas vivos. De uma, mais à esquerda, um arbusto, entre peitoril e verga, espreita os transeuntes. Placas de vende-se quebram a harmonia. Os proprietários alegaram a impossibilidade de arcar com os valores orçados para a restauração – há realmente muitos imbróglios na área patrimonial. Ao menos um imóvel, à entrada da vila, foi ornado com placas do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan). Talvez sinal de que cada qual terá sua vez.

Vista lateral da casa de Vasconcelos Jardim.

O sobrado em que teria vivido o estancieiro Cara de Sola é um dos mais preservados. Tombado pelo Iphan, o casarão teria abrigado esse sujeito de nome real perdido no tempo. Dono de enorme senzala, conta-se que maltratava os escravizados a ponto de fazê-los ocupar o lugar dos bois para puxar as carretas. Permanecem os mesmos dois andares que que teriam depois servido como quartel-general para Francisco Pedro de Abreu (1811-1891), o Moringue ou Chico Rei, líder das forças imperiais, figura nefasta ligada ao episódio do massacre dos Lanceiros Negros. O passado arquitetônico, ver quem ocupou o terreno mais fértil, quem andou nos assoalhos mais nobres, e cogitar onde teriam residido os demais pode ser uma fantástica aula ao ar livre (quem não incorpora o feeling da aprendizagem com a realidade, qualquer que tenha sido, tenta apagá-la, inclusive sob bons pretextos).

Sobrado em que residiu Cara de Sola.

Nem somente de fatos comprováveis sobrevive um povoado. Lacunas são como vãos onde se aconchegam lendas, que encorpam o imaginário e atiçam a curiosidade, especialmente dos visitantes. A crença na existência de um túnel entre a igreja e uma das casas, aquela de Vasconcelos Jardim, resiste mesmo às escavações feitas à época da restauro do santuário, quando nada foi encontrado. 

Cheguei em dia frio de pandemia. O acesso é por uma por estrada de chão, creio que estavam asfaltando um trecho, as máquinas estavam por ali. Depois uma volta pela praça, desci uma das ruelas perpendiculares que desembocam na área limítrofe com o rio. Único trajeto em que havia, mas pouca, movimentação. Um adolescente vinha empolgado rua abaixo, ouvindo funk, e uns guris à entrada de uma residência, onde o primeiro entrou.

Na base da encosta, o acesso para a prainha do Coqueiro, oásis dentro do oásis. Dividi com um mochileiro-motoqueiro o silêncio e o vento empurrando as águas. Uma estátua de Iemanjá guarda os navegantes e disputa as almas com a igreja no alto da colina. Outro indício da presença dos então denominados pardos, pretos ou crioulos, contingente de escravizados e descendentes? Tentador, mas ligá-los automaticamente, no Brasil, a religiões africanas – e os brancos ao cristianismo – nem sempre reflete precisão histórica face ao sincretismo e movimentação religiosa individual.

Praia do Coqueiro.

Nos anos 1930, com a construção do Arsenal de Guerra do Exército em General Câmara, o eixo administrativo e político, que ficava em Santo Amaro, se deslocou. Transição responsável pela peculiar resistência à modernidade. Azar ou sorte? O que será daqui a uns anos? A política de conservação patrimonial afrouxará o abraço feito oficialmente em 1998?

A vila foi cenário do filme Um certo capitão Rodrigo, dirigido por Anselmo Duarte (1920-2009), ganhador da Palma de Ouro em Cannes por O Pagador de Promessas. Um ectoplasma convincente da Santa Fé dos livros de Érico Veríssimo (1905-1975). Nas primeiras cenas, aparecem várias construções como pano de fundo para o petulante Rodrigo, bem encarnado pelo ator Francisco di Franco (1938-2001). Em algumas tomadas, filmaram no cemitério – local que sempre incluo nos meus itinerários para revisitar a fragilidade humana. Necrotérios são espantalhos da mundanidade que assombra quem está com o capitalismo impregnado (quem não?). O longa está disponível no YouTube.

Santo Amaro é uma experiência orgástica. Mas a balsa… Não rolou. Na próxima… Fui e retornei pela RS 244, pelo belo túnel de árvores em Vale Verde. 


Jandiro Adriano Koch, ou Jan, nasceu e vive em Estrela, RS. Graduou-se em História pela UNIVATES e fez especialização em Gênero e Sexualidade. Com quatro livros lançados, dedica-se a estudar e mostrar vivências LGBTQI+, especialmente em sua região, o Vale do Taquari. Na Feira do Livro de 2019, lançou um novo livro, pela Libretos, Babá – Esse depravado negro que amou.

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