Crônica

Repito: não as matem!

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Repito: não as matem!

Em 1915, o escritor Lima Barreto já denunciava a violência contra as mulheres em sua crônica intitulada “Não as matem”. A ilusão de domínio do homem sobre a mulher atravessa o tempo e empurra nossa sociedade para o abismo da perversidade. Deveria enojar a todos nós. Os homens, e uso de forma genérica esse termo, pararam no tempo, o que significa dizer que, embora suas massas corpóreas habitem o presente, suas mentes vagam por uma evocação de domínio sine qua non. As mulheres, com suas lutas, têm enfatizado: não vai rolar.

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Em 1915, o escritor Lima Barreto já denunciava a violência contra as mulheres em sua crônica intitulada “Não as matem”. A ilusão de domínio do homem sobre a mulher atravessa o tempo e empurra nossa sociedade para o abismo da perversidade. Deveria enojar a todos nós. Os homens, e uso de forma genérica esse termo, pararam no tempo, o que significa dizer que, embora suas massas corpóreas habitem o presente, suas mentes vagam por uma evocação de domínio sine qua non. As mulheres, com suas lutas, têm enfatizado: não vai rolar.

O Natal, como sabemos pela etimologia, nos remete a “nascimento” e, para os cristãos, simboliza o nascimento de Jesus Cristo. É nessa época que as pessoas parecem sentir o imperativo moral do perdão e passam a agir com uma sensibilidade incomum se comparada à sequência do ano. Na véspera de Natal do mortífero ano de 2020, alguns homens, possivelmente cristãos, possivelmente defensores da moral e dos bons costumes, possivelmente tementes a Deus ou a alguma entidade invisível, se juntaram a tantos outros que, ao longo da volta da Terra em torno do Sol, arrancaram suas máscaras para mostrar o que costumam fazer a milênios: praticar a morte contra mulheres.

Eu penso no que diz Lima no início do século 20: “Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros”. Acredito, meu caro Lima, que a justiça brasileira, ao menos, deveria saber, mas parece estar com suas vistas cansadas há séculos. Enquanto isso, continua Lima: “Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer”. Fácil notar que são ridículos, imbecis, mas o que importa mesmo, meu irmão, é o reconhecimento de sua criminalidade e a necessária responsabilização de seus atos condenáveis.

Sabemos: o amor acaba. Por inúmeras razões, o amor acaba. Vocês sabem que o amor pode acabar, né? Mas é certo que, numa relação reciprocamente amorosa entre um homem e uma mulher, é o homem, com sua opressão milenar, quem costuma arruinar esse amor. Os homens, intoxicados por uma masculinidade retrógada que alimenta um ciclo nocivo, destroem tudo ao seu redor, inclusive a si próprios.

A ignorância alcança a todos. A brutalidade nos preside. Não é possível viver assim. A gente até identifica monstros e tem por eles uma sanha vingativa. Mas a razão nos leva a crer na necessidade do reconhecimento de um problema de ordem cultural, estrutural. É uma coletividade que perpetra violência deliberada contra qualquer vestígio de feminilidade. Sim, é um problema que deve envolver toda a sociedade, meu velho.

A escritora Juliana Borges nos lembra que empatia é “a capacidade de imaginar-se no lugar de outra pessoa, ou seja, a habilidade de projetarmos em nós dificuldades, valores, sentimentos e ideias do outro”. Também nos pede: “Projete-se. Imagine-se. Construa situações diante dos conceitos e dos fatos históricos”. Bote fé. Você consegue.

Não esqueçam: não é possível viver assim. A construção de uma sociedade saudável, justa e equilibrada, sabemos, passa pela luta coletiva por direitos, mas pode ser acelerada se a justiça não seguir deitada em berço esplêndido e não se exasperar só quando tenha sua imortalidade abalada.

Mais de um século depois, faço coro ao Lima, não num tom salvacionista (não faz o menor sentido), e sim como mais um simples cidadão ciente de que o sistema de justiça criminal brasileiro tem profunda conexão com o racismo, com o machismo e com tantas outras desigualdades sociais: não as matem!


Evanilton Gonçalves é escritor. Nasceu em Salvador, Bahia, onde reside. É Graduado em Letras Vernáculas pela UFBA e Mestre em Língua e Cultura pela mesma instituição. Participou, como escritor convidado, de diversos eventos nacionais e internacionais. Já teve contos publicados em diversas revistas e antologias. Publica crônicas mensalmente no jornal A Tarde. Editou, junto com o poeta Ricardo Aleixo, a revista de literatura Organismo nº 8. Autor do livro Pensamentos supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo (Paralelo13S).

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