Crônica

Sobre Covid, livros e mãe

Change Size Text
Sobre Covid, livros e mãe Mar da infância (Arquivo pessoal)
Eu tinha oito anos em 1996. Como todo guri da minha idade, possuía braços largos, pernas finas e nenhum pelo no corpo. Eu era um piá esquisito, com cabelos desgrenhados e cheio de autoestima, como as pessoas costumam ser nesta idade. Eu, minha mãe e minha irmã passávamos os janeiros inteiros em Cidreira, em uma confortável casa de três quartos construída 10 anos antes em uma rua que atendia pelo genérico nome de Rua 6 e que era a penúltima via existente antes que as casas dessem lugar ao deserto branco de dunas e vento.  À noite, quando ventos fantasmagóricos sopravam por entre a copa das árvores da rua e suscitavam meus mais íntimos medos, quando a sinfonia sofrida dos sapos nas poças d’água dava à escuridão da rua uma atmosfera ainda mais onírica, eu me enfiava debaixo da coberta da cama e gostava de me sentir protegido e ver minha respiração fazer grandes elevações no lençol. Era muito bom poder dormir pensando na escuridão misteriosa que havia para além daquela grossa janela fechada no quarto em que eu dormia.  Os dias sempre raiavam e eu acordava já quando os primeiros raios de sol invadiam o chão do quarto por meio de pequenos filetes alaranjados que lentamente se moviam pelos quadrados brancos do piso. A noite havia sido vencida e um dia inteiro se desenrolava pela frente. Havia as idas ao mar, a música da Garota Verão, o cheiro de protetor solar, a velha geladeira que dava choque, a tevê de tubo, a privada às vezes meio entupida, os pães da padaria, as imensas filas para se usar o orelhão, o cheiro de grama, as locadoras de fitas de videogame, o brincar de taco com a turma da rua, depois tomar banho, comer e mais uma vez se entregar ao sono na noite. Meu pai trabalhava durante a semana e aparecia no sábado de manhã, com o Monza a álcool carregado de carne e cerveja. As semanas pareciam durar uma vida inteira. Era comum que houvesse a chegada dos tios, primos e um ou outro agregado. Janeiro era um mês para ser respirado em sua plenitude.  Houve um domingo que eu acordei com a autoestima bem elevada. Eu havia tirado não sei de onde a convicção de que eu era um exímio nadador e que, portanto, poderia desbravar o mar de Cidreira até a arrebentação. Tanto insisti, que minha mãe resolveu por me levar até a praia já no início da manhã. Pelas seis quadras que nos separavam da faixa de areia, eu dizia a ela que iria nadar até muito longe. Minha mãe, no entanto, se mantinha em silêncio. Quando a primeira onda atingiu os meus pés, eu senti frio. Na segunda, medo. Na terceira, olhei para a frente e percebi a enorme distância que me separava da arrebentação e me senti ridículo frente ao meu recente intuito atlético. Mesmo assim, respirei fundo e me lancei com fúria às águas. Minha mãe pediu para eu me cuidar e não […]

Quer ter acesso ao conteúdo exclusivo?

Assine o Premium

Você também pode experimentar nossas newsletters por 15 dias!

Experimente grátis as newsletters do Grupo Matinal!

RELACIONADAS
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.