Crônica | José Falero

Sweet Child O’ Mine: quinta parte

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Sweet Child O’ Mine: quinta parte

Na semana passada, comentei que um dos novatos no segundo ano da oficina era o meu melhor amigo desde que eu me entendia por gente: o Maickel. Também comentei que o convenci a frequentar a oficina comigo porque precisava de alguém para amenizar o meu medo do mundo, como a minha irmã tinha feito no ano anterior. E comentei, ainda, que o Maickel era um roqueiro irremediável. Pois bem. O que eu não comentei, e nem poderia mesmo ter comentado, já que trata-se de algo que nunca consegui compreender direito, foi como ele conseguiu suportar um ano inteiro de uma oficina de música sem rock’n’roll. Mas a sua paciência estava prestes a ser recompensada.

Conforme tinha acontecido no início daquele ano, também no início do ano que se seguiu tivemos baixas na guerra entre o desfrute da cultura e o enfrentamento à vida real. A terceira turma da oficina era grande, inclusive talvez fosse a maior até então, mas quase ninguém se conhecia, porque boa parte dos veteranos tinha desaparecido. Para falar a verdade, acho que eu era o único ali que frequentava a oficina desde o primeiro ano, e o Maickel devia ser o único que a frequentava desde o segundo; todo o resto eram marinheiros de primeira viagem. Incluindo o professor. Sim, porque, lamentavelmente, o Fausto foi uma das nossas baixas.

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Na semana passada, comentei que um dos novatos no segundo ano da oficina era o meu melhor amigo desde que eu me entendia por gente: o Maickel. Também comentei que o convenci a frequentar a oficina comigo porque precisava de alguém para amenizar o meu medo do mundo, como a minha irmã tinha feito no ano anterior. E comentei, ainda, que o Maickel era um roqueiro irremediável. Pois bem. O que eu não comentei, e nem poderia mesmo ter comentado, já que trata-se de algo que nunca consegui compreender direito, foi como ele conseguiu suportar um ano inteiro de uma oficina de música sem rock’n’roll. Mas a sua paciência estava prestes a ser recompensada.

Conforme tinha acontecido no início daquele ano, também no início do ano que se seguiu tivemos baixas na guerra entre o desfrute da cultura e o enfrentamento à vida real. A terceira turma da oficina era grande, inclusive talvez fosse a maior até então, mas quase ninguém se conhecia, porque boa parte dos veteranos tinha desaparecido. Para falar a verdade, acho que eu era o único ali que frequentava a oficina desde o primeiro ano, e o Maickel devia ser o único que a frequentava desde o segundo; todo o resto eram marinheiros de primeira viagem. Incluindo o professor. Sim, porque, lamentavelmente, o Fausto foi uma das nossas baixas.

Para a alegria do Maickel, havia uma penca de roqueiros entre os novos alunos, e o professor mesmo parecia não saber da existência de outros gêneros musicais além do rock’n’roll. Em um dos encontros, quando perguntei se haveria alguma bossa nova ou (talvez, né?, quem sabe?, por que não?) algum samba no nosso repertório, ele propôs que ensaiássemos Faz parte do meu show, do Cazuza, e O mundo é um moinho, “também do Cazuza”. Murchei. Poucas vezes na vida tive tanta convicção de que eu estava no lugar errado.

Deixei de frequentar a oficina, mas a minha preconceituosa alergia a rock’n’roll daquela época não foi o único motivo. Em primeiro lugar, o grande barato, para mim, era a oportunidade de me familiarizar com a teoria, e como eu tinha feito bastante progresso nos dois anos anteriores, o que eu ainda tinha a aprender estava totalmente fora do escopo daquela oficina, cuja meta era oferecer alguma iniciação no mundo da música, mesmo para jovens que jamais tivessem tido qualquer contato com o fazer musical. Então, além de pensar comigo mesmo que talvez eu não conseguisse tirar mais nada daqueles encontros noturnos no falecido Centro Cultural da Lomba do Pinheiro, percebi que já me sentia preparado para continuar os meus estudos por conta própria, depois de tudo o que eu já tinha aprendido com o Fausto. Em segundo lugar, eu estava me tornando cada vez mais antissocial, tinha cada vez maior dificuldade em interagir com as pessoas. O Maickel, por outro lado, parecia gozar de plena saúde emocional, e fazia amizades com uma facilidade que me dava nos nervos. Do meu ponto de vista ligeiramente egoísta, se a porra do meu melhor amigo frequentava a aquela maldita oficina a convite meu, não era para que ele próprio pudesse tirar algum proveito, e sim para que eu me sentisse melhor do que me sentiria se não houvesse à minha volta qualquer rosto familiar. Mas não demorou muito para que o Maickel e os outros roqueiros da turma fossem como irmãos, e a partir daí a minha presença ao lado dele se tornou constrangedora. Eu não conhecia as músicas sobre as quais eles conversavam com entusiasmo, não achava menos do que absurda a forma como eles se vestiam, não compreendia as piadas das quais eles gargalhavam. Muitas vezes tive a sensação de que gargalhavam era de mim. Nunca consegui que me chamassem pelo nome. Eu era o amigo do Maickel. O amigo tímido do Maickel. O amigo mudo do Maickel. O amigo estranho do Maickel. O amigo do Maickel que decidiu não aparecer mais na oficina.

Solidão.

É sempre difícil olhar para trás sem incorrer em anacronismos, mas tenho quase certeza de que, já naquele tempo, eu podia fazer uma avaliação bastante lúcida da minha situação; quase tão lúcida quanto a que sou capaz de fazer hoje. Embora sempre erguesse a cabeça com altivez, embora sempre exaltasse a importância dos meus estudos e das minhas leituras, embora sempre tentasse demonstrar desprezo pela vida que os jovenzinhos da minha idade levavam, embora sempre proferisse blasfêmias contra o mundo e contra os costumes quando me perguntavam a razão de eu não ir a parte alguma, de viver em absoluto isolamento dentro de casa, eu tinha, sim, consciência de que a minha crescente dificuldade em interagir com as pessoas não podia ser saudável. Eu sabia. Eu sempre soube. Mas não são raras as ocasiões em que um conhecimento mostra-se inútil, simplesmente por não sabermos o que fazer com ele. Essa informação permaneceu ali, no meu interior, me atormentando de vez em quando, me impedindo de ficar em paz por muito tempo, como um mosquito chato que atrapalha o nosso sono na escuridão da noite. Na solidão do meu quarto, entre uma tentativa e outra de compor um partido-alto, entre uma tentativa e outra de tirar chorinhos de ouvido, quando eu menos esperava, vinha zumbir dentro da minha cabeça a pergunta que eu mesmo me fazia: “O que tu vai sentir quando tiver cinquenta anos e perceber que já não dá mais tempo de fazer tudo isso que hoje tu pode fazer e simplesmente não faz por causa de medos que talvez sejam bobos?”.

Na calçada em frente à casa da minha vó havia uma espécie de bueiro elevado cerca de meio metro acima do solo: uma fossa. Aquilo servia de banco, e era ali que eu me sentava depois de reunir toda a minha coragem e sair de casa para enfrentar a rua, nas minhas patéticas tentativas de voltar a conviver com as pessoas. Jamais conseguia mais do que isso: me sentava ali e, rezando para que ninguém viesse me dirigir a palavra, ficava observando a vida de todo o mundo se desenvolver, com exceção da minha, que, me parecia, permanecia estagnada. Alguns viravam funkeiros, outros arranjavam uma namorada; alguns viraram pagodeiros, outros mudavam de cidade; alguns viravam regueiros, outros começavam a roubar carros. Fosse como fosse, estavam todos encontrando a sua turma. Eu não. Eu estava literalmente na fossa. E foi dali, da fossa, que vi, uma noite, o Maickel, que nos últimos meses andava sumido, aparecer na vila acompanhado dos roqueiros que tinha conhecido na oficina de música, mais de dois anos antes. Parecia a chegada do circo à cidade: o estilo deles estava mais radical do que nunca. Entraram na casa do Maickel, demoraram-se lá por uns minutos, tornaram a sair e, por fim, foram embora, pela mesma rua por onde tinham vindo.

Aquilo devia ser bom, eu fiquei pensando. Ter amigos. Pertencer a um grupo. Ter lugares aonde ir.

Leia aqui as outras partes da série.


José Falero é escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e Os Supridores (Todavia, 2020).

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