Crônica

Tecer em uma bienal de arte

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Tecer em uma bienal de arte Bordados da artista Sueca Sami Britta Margareta Marakatt-Labba.

*A autora escreve para a Parêntese a respeito de sua experiência na Bienal de Veneza

Tecer me faz pensar em ter ser. Algo que se constrói de si num fazer. Eu gosto de brincar com as palavras, em parte por conta do meu oficio de psicanalista, mas muito porque meu pai me deu um dicionário quando eu era pequena, um dos únicos presentes que ganhei sem planejamento. Talvez tenha comprado por solidariedade ao caixeiro, oficio compartilhado por ele, jamais saberei, ficaram as palavras. O dicionário era de quando se vendiam enciclopédias de porta em porta, senhores distintos com gravatas levavam em malas o conhecimento. Naquele tempo o google tinha pernas, fatiota e suor no rosto e pedia licença para entrar. 

Tecer é um verbo feminino, isso não tá no dicionário, mas deveria. São mãos femininas que o dão sentido. Andando pela Bienal de Arte de Veneza deste ano me encontrei com essas mãos que tecem arte em 90% dos artistas, no caso, esses 90% eram mulheres, a curadora Cecilia Alemani assim o quis. Buscou inspiração em escritoras surrealistas dos anos 50. O moderno e o novo se encontravam nessa bienal tecidos por mãos femininas. Foi a bienal com maior representação de mulheres da história. 

Meu pai não entenderia meu gosto pela arte. Mal sonha ele que foram suas mentiras durante as sessões da tarde nos escaldantes verões de Porto Alegre que me ajudaram a pegar gosto. Lembro como se hoje fosse de um filme que se passava em Paris e ele disse, apontando para a tela, no canto direito, que ao dobrar naquela esquina, lá na quadra de baixo, tinha um bar de um amigo que ele muito visitara, ele e grandes artistas. Falava com a convicção dos mentirosos, ou dos bons contadores de estórias. Na época eu acreditava em tudo, mas até hoje não duvido que ele teria convivido, em algum sonho, com artistas em volta de uma mesa de bar. Afinal, quem são os artistas? 

Se na bienal deste ano a maioria são mulheres, elas também são como chefes de família e em tantos outros lugares. Não seria a arte essa potência de transbordar, de criar e recriar-se, esse tecer de fios de história inventando imagens, remendando roupas, sentimentos e a pele?


Foto da Obra da sueca Britta Margareta (Samantha Buglione)

É possível costurar a vida de várias formas. Nem todas elas são arte, alguma são pura condição de sobrevivência. A arte não é sobrevivência, é sobre o viver: sobre viver. Disso que pode parecer romântico é o dia a dia que nos coloca em um lugar que permite, com as linhas e tecidos disponíveis, escolher o ponto e a forma. Há limitações, sempre há, e não são elas que fazem o artista? Não sem dor, não sem empenho. A arte é esse parto, às vezes natural, às vezes cesariana e que está lá num tempo, num espaço e num desejo. 

Nas imagens, o tecido bordado e pintado é da artista Sueca Sami Britta Margareta Marakatt-Labba. Ela faz borda com bordado. Eu gosto da palavra borda. Me lembra as vezes em que me agarrava na borda das piscinas em que eu não tinha pé e ali depositava toda a minha sobrevivência. A borda nos dá uma segurança. No caso de Britta a borda é um reinvento de um fazer antigo misturado com tintas e imagens que remetem a sua terra natal, de onde partiu. 


Foto da Obra da tunisa Safia Farhat (Samantha Buglione)

As obras em linho branco, bordadas com lã, relatam o cotidiano dos Sami, povo europeu mais ao Norte da Escandinávia, cenas de uma delicadeza acolhedora. É possível viajar pelas linhas de Britta, conhecer outros mundos com outras texturas, cores e cheiros. Ali, diante de painéis horizontais com mais de cinco metros, lembrei-me das mulheres da minha família e nas quantas vezes em que bordaram e teceram e pintaram tecidos que virariam panos de prato, camisetas de festa, toalhas de mesa e tapetes de banheiro. 

Penso sobre onde habita a diferença das minhas tias e mãe para Britta. Talvez elas e eu precisássemos mais de bordas de segurança, e nossa arte deveria ter utilidade. Não bastava o fazer na roda de mulheres, tal qual a mesa de bar dos artistas imaginários de meu pai em uma Paris que ele nunca visitou. Era preciso que o crochê fosse útil. Mas a arte nos leva para além dessa utilidade. Viver não é útil. E as obras de Britta me fizeram revisitar os panos de prato e os detalhes das colchas da minha infância. 

Tudo parece um pequeno milagre. Mesmo na sobrevivência do cotidiano havia tempo para embelezar panos de prato. Qual utilidade, afinal, em deixar um pano de prato belo? Eles eram, por vocação, a falha e a convocação a algo que nem mesmo sabemos. Os belos panos de prato sempre me incomodaram. Pareciam deslocados entre panelas de alumínio com pouca comida. Mas estavam lá como uma resistência a lembrar de algo humano às vezes (muitas vezes) esquecidos: a potência de inventar. 


Foto: Samantha Buglione

A Bienal de Veneza deste ano baseia-se no surrealismo do livro infantil O leite dos sonhos, de Leonora Carrington. No seu livro, a autora conta a estória de uma criatura mutante, descreve um mundo mágico no qual a vida vem constantemente reinventada através da imaginação e na qual é possível mudar, transformar-se e reinventar-se. 

Um pano de prato puído e encardido, com bordados, talvez tenha sido a salvaguarda da minha infância, a contradição necessária para aprender a ver o belo no impensável. Se meu pai me deu o gosto pelas palavras, os bordados e costuras de minha mãe me deram o gosto pela contradição que cria espaço, fissuras e movimento. Sem esses espaços não há arte. E Britta, com suas mãos, nos mostra isso docemente. 


Samantha Buglione – Psicanalista membro da Fórum do campo lacaniano Brasil, escritora, doutora em ciências humanas. www.samanthabuglione.com.br

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