Crônica

Aos 45 do segundo tempo

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Aos 45 do segundo tempo

Há um tempo escrevi, aqui mesmo, na Parêntese, uma crônica chamada Quarentena, onde trouxe um lance típico de futebol como metáfora para a nossa atual condição de enfurnados. E parece que Dalva, minha namorada, capturou melhor do que ninguém o espírito daquele texto.

Ainda outro dia, quando tocou no rádio aqui de casa a canção-símbolo do nosso namoro — Thank you, da cantora britânica Dido —, me atrevi a dançar e cantar junto, enquanto conversávamos por vídeo-chamada. Dalva, claro, caiu na gargalhada.

Recompus-me logo do vexame e fiz uma observação:

— Impressionante: nunca ri das piadas que eu faço, nunca acha a menor graça nos memes que eu mostro. Mas basta ser eu o motivo da chacota, e pronto: aí gargalha até não poder mais.

Dalva não deixou por menos.

— Ah, Preto! Vai querer me acusar de te diminuir? Logo eu? Lembra aquele seu texto da bola esticada? A coisa de ter fé no outro? Pois então: ninguém neste mundo botou mais fé nocê do que eu, véio. Ninguém esticou mais bola procê do que eu. É ou não é? Olha o tanto de vez que eu te deixei cara a cara com o goleiro desde que a gente se conheceu!

Não pude ouvir calado uma verdade daquele tamanho.

— Tudo bem. Mas as bolas que tu esticou não adiantariam de nada se eu fosse um perna-de-pau. Eu cheguei em todas, aproveitei todas, fiz todos os gols. Matador, meu bem. Eu sou o camisa 9 que todo camisa 10 pede a Deus.

As sobrancelhas empinadas e os beiços torcidos de Dalva indicavam que eu tinha poucos segundos para fazer um acréscimo menos egocêntrico.

— Mas tu, meu amor, é a camisa 10 que todo camisa 9 pede a Deus — sorri.

— Preto, pega a camisa 10 e enfia no cu! Já tô cansada de ficar só esticando bola procê, enquanto ocê fica lá na frente, de braços cruzados, só esperando eu largar ocê com a faca e o queijo na mão. Quem sabe a gente troca um pouco? Hein? Quando é que ocê vai esticar umas bolas pra mim?

Quem está sempre por dentro jamais pode olhar de fora, penso. Isso implica o fato de que nunca temos uma noção neutra de nós mesmos. Em outras palavras, o que pensamos acerca de nós mesmos é made in nós mesmos e, portanto, sujeito a suspeitas, para dizer o mínimo. Detesto citar franceses, mas, enfim: o inferno são os outros.

No entanto, não são raras as ocasiões em que é tão frágil, tão fantasmagórico, tão ridiculamente falsificado aquilo que pensamos de nós mesmos, que uma inesperada opinião estrangeira termina por nos pegar com as calças na mão, deixando-nos sem o que dizer e lançando-nos na mais indesejada crise existencial. Foi o que me aconteceu naquela conversa. Calei-me por dias a fio, porque toda e qualquer argumentação que me ocorria depunha contra mim mesmo.

“Cada qual com o seu talento, meu bem.”

“Infelizmente, não herdei os teus atributos.”

“O poste nunca mija no cachorro.”

“Tô véio demais pra jogar no meio de campo.”

Quando não pude mais aguentar o que tinha começado a achar de mim mesmo e já começava a sentir o cheiro da depressão, pedi para Dalva me enfiar outra bola. Isto é, pedi socorro.

— Por que eu sou tão egoísta? Passei a vida toda me preparando pra ser foda em alguma coisa. Nunca, em nenhum momento, planejei sair dessa posição pra apoiar alguém que precisasse. Nunca fiz por ti sequer uma fração do que tu fez por mim. Nunca fiz pela minha irmã sequer uma fração do que ela fez por mim. Nunca fiz pela minha mãe sequer uma fração do que ela fez por mim. Por que eu sou assim?

— Preto, ocê pode não ter feito muito por mim ou pela sua irmã, mas pela sua mãe ocê fez, sim! Olha o tanto que ocê tá ralando, cara! Olha o tanto de coisa que ocê tá tendo que enfrentar e resolver pra sua mãe poder sair do hospital e não ter que ir direto pra um trabalho precarizado; pra ela poder ir descansar numa casa digna! Eu concordo: ocê passou a vida toda sendo cuidado e sem cuidar de ninguém, mas tudo o que ocê tem feito pela sua mãe nos últimos tempos transformou ocê noutra pessoa. Ocê tá jogando com a 10, cara, e tá jogando bem! Mais do que isso: ocê tá lá atrás, bancando o zagueiro! Ocê tá no gol, véio, recebendo bico de tudo que é lado, e não tá deixando passar nada!

Fiquei aliviado ao ouvir tudo aquilo. Era o gol de que o meu time precisava, aos 45 do segundo tempo.


José Falero é escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019) e Os Supridores (Todavia, 2020).


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