Crônica

Uma ciranda na biblioteca

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Uma ciranda na biblioteca
À Lygia Fagundes Telles Naquele maio eu completava doze anos. Mais uma vez levantávamos mudança pra uma nova cidade. Novo estado, nova vida, nova escola. Eu não queria. Foi a primeira vez que eu falei diretamente pro meu pai:  – Não quero ir! – Mas tem que ir. – Eu quero ficar aqui, com meus amigos. – Vai fazer novos amigos lá. – Não vou nada! – Vai sim, você sempre fala isso, mas não consegue. Daquela vez eu iria conseguir. Não fazer amigos era minha mais inédita missão e eu não pretendia falhar. Mais de um mês depois eu não conversava com ninguém na escola. Duas meninas tentaram ser minhas amigas, eu até deixava elas sentarem comigo no recreio, mas não conversava. Não falava sobre os outros lugares que tinha morado, não aceitava convite de almoço, não ia estudar junto, não voltava na companhia de nenhum colega pra casa. Em pouco tempo eu encontrei a solidão e o silêncio de não se mencionar o passado. Eu estava magoada e, pela primeira vez, que eu me lembre, estava disposta a arrancar a casquinha daquela ferida todo dia. Esquecer não é o mesmo que perdoar e nem isso eu queria. O problema é que eu não sabia como ser triste. Eu tinha passado anos cultivando uma maneira alegre de viver, mesmo quando o cotidiano era complicado, como foi em Barretos ou na vez que ficamos morando numa construção de favor em São Paulo. Pra minha vivência infantil as experiências passavam por muitos níveis, o financeiro era só mais um. Eu estava quase falhando. Ver todo aquele cerrado, aqueles dias claros, o campo tão próximo da nossa pequena cidade e a linda árvore que floria de roxo nosso pátio da escola era muita tentação. Eu precisava conversar com alguém, eu queria, eu só não devia. Comecei a fugir das minhas colegas na hora do intervalo, mas sabia que eu precisava de um plano para conseguir continuar focada no meu objetivo antissocial. Alguma professora passou um dever de casa pra pesquisar sobre a vegetação e o clima da região central do país, e eu fui pro único lugar que eu sabia que poderia encontrar esta informação. Ao chegar na biblioteca municipal, fui entrando devagarinho, não queria cruzar com nenhum colega lá, então primeiro observei o ambiente na esperança de, se necessário, retornar outro horário, afinal já tinha fugido da biblioteca da escola pra não ser importunada. Naquela semana eu descobri algo que valeria uma mudança de vida: ninguém frequentava a biblioteca da cidade. O prédio ficava na praça central, perto do coreto. Atrás, quem atravessasse a rua já chegava na santidade da Igreja e continuando pela rua da frente passava à esquerda pela prefeitura e à direita pela lanchonete. Era uma das ruas mais movimentadas e, portanto, ninguém parecia notar aquela porta. Primeiro julguei ser uma coincidência, mas cansada como estava de fugir de todo e qualquer possível contato humano acolhedor, fiquei satisfeita pela pausa. Fui todas as tardes lá. Um pouco depois […]

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