Nathallia Protazio
Nathallia Protazio, escritora
Agora Vai | Crônica

Vidro

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Vidro Maria Helena Valente da Cruz. O vidro partido. c. 1952. Ampliação fotográfica em papel, gelatina e prata, 30,2 × 29,2 cm. The Museum of Modern Art, New York. Adquirido generosamente de Donna Redel. © 2020 Estate of Maria Helena Valente da Cruz
‘‘Don’t hurt yourself” – Beyoncé

Quando penso em amor, penso em você. Mas depois desses últimos três anos, quando o pensamento vem faço um esforço pra mandar ele embora. Às vezes me pergunto como algumas pessoas podem nos trazer tantas emoções antagônicas. Hoje li sua mensagem e senti pena. Não gosto de sentir pena. Dó. É uma emoção muito rasa. Não cabe amor, muito menos ódio na pena. Não cabe solidariedade ou sequer um resquício de empatia. A pena é a versão mais barata de uma tristeza que morreu de fome. Sentir raiva, frustração, amor, menosprezo, todos esses sentimentos que alimentam nosso modo de vida violento, é de uma certa forma confortável. O costume de vê-los quando crianças e depois senti-los nos permite domesticá-los. Entretanto, a tristeza continua sendo o grande fantasma das emoções humanas. Não sabemos ficar só tristes. Não sei ficar só triste. Então, hoje à tarde, lendo tua mensagem de adeus, senti pena.

Há pouco mais de dois anos eu fiz um aborto. Durante uma viagem que deveria ser para ‘‘passar um tempo com a família’’, eu me peguei mijando escondida num teste de farmácia. Positivo. ‘‘E agora?’’ Uma nova definição para o ‘‘não sei’’. Volto para o meu lugar na mesa do restaurante e dali em diante algumas cenas se seguem diante dos meus olhos. O prato de Carbonara. A discussão que faz as pessoas ao redor se mexerem nas cadeiras. O movimento dos carros lá fora através do vidro da janela. Minhas mãos errando os talheres. Alguém percebe minha ausência, não lembro seu nome, pode ser uma pessoa conhecida, deve ser uma pessoa conhecida, afinal, sabe meu nome. Ela está me perguntando o que eu tenho e a única coisa que consigo soltar de dentro do meu peito espremido pelo tamanho da novidade é um ‘‘não sei’’. Quando a coisa aperta, eu lembro que não sei de nada.

Os dias passaram e eu voltei pra casa. Ela nunca me pareceu tão grande. O corredor ecoava silêncios. Deitei na cama exausta. Meu corpo não me cabia. Havia um punhado de células se multiplicando a toda velocidade aqui dentro me impedindo de fechar os olhos. Eu continuava sem saber o que fazer, mas uma coisa era certa, aquela gravidez eu não tinha feito sozinha. Depois de esgotar todas as possibilidades de como iria te avisar, me resolvi pelo meu estilo habitual: direto e reto. A tua resposta foi uma das piores coisas que já me aconteceram. Um oceano de indiferença e descuido saindo pela tela do meu celular, molhando minhas mãos, meu rosto, escorrendo pelos braços, inundando a cama, os lençóis, o chão, chegando ao guarda-roupa e ganhando o resto da casa com uma violência desconhecida. ‘‘Faz o que você quiser. Estou num churrasco. Te ligo mais tarde.’’

Tua ligação chegou com o atraso de dois dias. Não faço ideia o que passava na tua cabeça durante este tempo todo. Você nunca me disse. Infelizmente me lembro com bastante nitidez daquela semana. Tua presença furtiva, alguns telefonemas e um olhar de incredulidade. Você sabe como uma mulher jovem que sonha em ser mãe se decide por um aborto? A solidão ajuda na escolha. Depois de dormir o resto daquele sábado e metade do domingo, tive energia suficiente para organizar as ideias. Acho que olhar pro próprio ventre imaginando o que está se passando embaixo da camada de algodão da camiseta, da camada de pele, músculo adiposo, músculo esquelético, tecidos e mais tecidos, células e mais células, olhar para aquilo que não se via era a única coisa a fazer. Olhei para dois futuros: em um eu teria um bebê dali a nove meses, no outro eu carregaria a responsabilidade de uma escolha irremediável. Um aborto.

Eu tinha emprego, uma casa, construiria um lar. A criança teria a melhor mãe que eu poderia ser, uma família que me apoiaria, amigas que nos acolheriam. Ela também teria um pai, de acordo com tuas palavras. Concordamos que forçar um casamento não era uma boa opção. Mas quantas crianças não crescem com pais separados? Você mesmo cresceu assim. Era realmente isso que você queria para a criança que poríamos no mundo? Qual possibilidade de paternidade você poderia oferecer? Eu não podia contar contigo para marcar um encontro no samba, uma janta ou uma conversa sobre o futuro, sem sentir lá no fundo que de novo eu estava armando o cenário perfeito para mais uma decepção. Qualquer situação em que criamos um mínimo de expectativa no outro é um cenário perfeito para uma decepção. Imaginei a perspectiva de criar e educar um ser humano contigo.

Não demorou muito para eu perceber, só precisei de uns dias a mais para aceitar e depois para me convencer que estava sozinha. Realmente sozinha. Com olhos amáveis, olhos que tu nunca tinha me mostrado antes, você me repetia que a gente podia dar conta, se eu quisesse, a gente podia ter a criança. Se eu quisesse tirar você não ia me impedir. O corpo era meu, eu sofreria a consequência da decisão, eu podia fazer o que eu quisesse. Se eu quisesse. Você não ia me julgar. Você não ia me deixar sozinha. Então, por que nunca me senti tão só na vida? Você me repetia por mensagem o quanto eu podia fazer o que quisesse. Podia mesmo? O que eu queria era ser mãe do jeito certo, e sem querer, sem planejar, eu percebi que algumas respostas a gente recebe antes mesmo da pergunta. Contigo e naquele momento, não era o jeito certo. Eu não podia trazer ao mundo uma vida num ambiente em que eu adulta já não me sentia à vontade. Não era justo com uma possível criança. Não era justo contigo. Nunca seria justo comigo.Existem muitas formas de amor. Muitas maneiras de amar. Afeto é deixar o outro nos marcar. Algumas vezes nos protegemos, nos areamos, e quem tenta ficar até deixa pegadas na superfície. O vento dos dias sopra devagar e sara. Com o tempo, as mágoas, as erosões, nos fazem mais duras. Sofremos em altas temperaturas e os grãos de areia de nosso ser mudam de estado físico. Se fundem de forma mágica. Ganhamos em honestidade e crescemos transparentes como vidro. Mulheres forjadas neste mundo. Mulheres de coração, como cantou Belchior, cuidado, frágil. Meu coração é como um vidro. Quebrado. Pontiagudo. Por favor, meu bem, não se machuque. Pise devagar.  


Nathallia Protazio é escritora e farmacêutica. Autora de Aqui dentro (Venas Abiertas, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra. 2022). Clique aqui e adquira seu exemplar direto com a autora.

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