Crônica

Você me faz lembrar super-heróis dublados

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Você me faz lembrar super-heróis dublados

Um dia me contaram a história de um fotógrafo de Porto Alegre. Um homem branco. Quando perguntavam o que ele fazia da vida ele respondia: “sou fotógrafo”, com uma naturalidade espantosa. E essa naturalidade era espantosa porque, na verdade, tudo o que ele tinha era ganhado dos pais: um bom apartamento, um bom carro, uma boa mesada, uma boa câmera para tirar fotos. Nada, absolutamente nada ele tinha ganhado trabalhando de alguma forma, muito menos trabalhando como fotógrafo. E no entanto “sou fotógrafo” era o que ele dizia.

Eu nunca consegui parar de pensar nisso, e nos últimos tempos tenho percebido que o conforto financeiro das pessoas raramente tem a ver com a sua ocupação, ou suposta ocupação. Na maioria das vezes o conforto financeiro das pessoas tem a ver mesmo é com heranças, ou privilégios, ou uma combinação disso.

Outro exemplo foi quando fiquei sabendo da existência de uma determinada tradutora branca. Fui dar uma olhada nas redes sociais da mulher e descobri fotos nas Pirâmides do Egito, na Estátua da Liberdade, na Torre Eiffel e por aí vai. Por um momento, fui idiota o bastante pra imaginar que talvez aquilo não estivesse longe de mim. Uns quatro anos de Letras com ênfase em Inglês e pronto: eu também poderia ser um tradutor. Afinal, como já consegui publicar uns livros, conheço algumas pessoas do mercado editorial que talvez pudessem mover uns pauzinhos e abrir portas pra mim. Não é mesmo?

Mas depois entendi que não era bem assim. O que mais tem por aí são tradutores mortos de fome, que precisam traduzir montanhas de textos para conseguir pagar minimamente as contas, e é muito mais provável que eu me torne um desses se tentar ir por esse caminho. Nada de Pirâmides do Egito, nada de Estátua da Liberdade, nada de Torre Eiffel. Com sorte, o meu trabalho como tradutor me levaria ao Lami, e olhe lá. 

Daí lembrei do fotógrafo branco de Porto Alegre, que no fundo não era um fotógrafo profissional, e sim um branco profissional. E fiquei pensando que tem muita gente por aí que são só isso: brancos profissionais. Jornalistas que não são jornalistas, mas brancos; escritores que não são escritores, mas brancos; atores que não são atores, mas brancos. Enfim, gente que não ganha um tostão sequer com a sua suposta atividade profissional, ou então ganha muito pouco, mas que mesmo assim ostenta um padrão de vida inacreditavelmente alto.

Voltei a pensar nisso com a história do meu mano Piê, que apareceu no New York Times outro dia. Ele demorou a saber da notícia, porque estava fazendo uma faxina em pleno sábado. Não uma faxina na própria casa, é preciso que se esclareça: ele estava faxinando a casa de alguém, pra conseguir pagar as contas. Piê é um gênio. Um escritor brilhante. Mas não é branco. E, mais do que isso, não quer ser branco. 

Eu também não quero ser branco, Piê. Prefiro morrer de fome antes disso. Tamo junto.

P.S.: eu fico me perguntando se é só no Brasil ou se em outro país também seria possível um cidadão figurar num dos jornais mais importantes do planeta pelo reconhecimento ao seu trabalho artístico e, ao mesmo tempo, precisar fazer faxinas pra pagar as contas.

P.P.S.: sempre aparece alguém pra me lembrar, como se eu não soubesse, que também existem brancos pobres nas periferias; isso é quase como negar as injustiças étnico-raciais e resumir toda a problemática social brasileira às questões de classe; mas as estatísticas já dizem tudo o que eu poderia replicar a esse respeito: se as pessoas não dão ouvidos a elas, é pouco provável que deem ouvidos a mim.


José Carlos da Silva Junior nasceu e vive na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Adotou o pseudônimo “José Falero” em homenagem à mãe, de quem herdou a veia artística, mas não o sobrenome. É escritor, autor de Vila Sapo (Venas Abiertas, 2019), Os supridores (Todavia, 2020), Mas em que mundo tu vive (Todavia, 2021) e participante das antologias À margem da sanidade (J. Vellucy, 2018) e Ancestralidades: Escritores Negros (Venas Abiertas, 2019).

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