Diário da espera | Parêntese

Diário da Espera, por Jeferson Tenório

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Diário da Espera, por Jeferson Tenório Sexta, dia 1 No terceiro dia de quarentena eu e minha companheira, Priscila, acordamos um pouco mais tarde, por volta das 9h30. Tomamos café. Ouvimos as primeiras notícias no rádio: “Aumento do número de mortos na Itália”. “O Brasil é o próximo”. “O governo federal minimiza o Corona”. Próximo ao meio-dia fizemos uma sessão de alongamento. Decidimos nos exercitar em casa e evitar a rua e os parques.  Após dias sem ir ao supermercado, optamos por ir apenas um de nós dois. Nesses dias, percebi que esse passou a ser um dos poucos lugares de socialização. Embora a ordem seja a de demorarmos pouco lá dentro, algumas pessoas parecem querer conversar umas com as outras, talvez seja um modo de lidar com o isolamento. Hoje um homem de uns cinquenta anos, sem cesto e sem carrinho de compras percorria os corredores à procura de pessoas para conversar. Dizia coisas do tipo: “Tudo isso vai passar, não vai?”, depois aconselhava a levar determinadas marcas de produtos: “Compra esse porque é bom, eu já usei”. Ninguém lhe dava muito ouvidos, apenas resmungavam qualquer coisa e saíam de perto. Estavam preocupados em pegar as mercadorias e sair logo dali. O homem seguiu pelos corredores à procura de gente. Num outro corredor escutei outros dois funcionários, eles abasteciam as prateleiras de massas. Dois guris, deviam ter entre 18 e 19 anos. Um deles disse: “Meu, tu vai ficar em casa, mesmo?”, outro respondeu: “Tá louco, vou sair por aí espalhando o Corona”. Os dois riram. Fiquei em dúvida se aquilo era uma brincadeira ou não. Em outro corredor, onde abasteciam os produtos de limpeza uma outra funcionária disse: “Não vou passar álcool gel, não precisa”, o outro respondeu: “Quero ver você dizer isso daqui a duas semanas”, a moça riu e perguntou em seguida: “Tá sabendo que já tem três funcionários com o Corona? Sabe o Mudinho? Então, ele tá com o vírus já”. Depois, segui atrás do que falta das minhas compras. Fui para o caixa. A funcionária que me atendeu esboçou um sorriso, mas era um sorriso cansado. Eu retribui. Meu sorriso era de angústia. Durante o resto do dia procurei voltar a minha tese de doutorado. Difícil manter a atenção a uma pesquisa que parece distante do que estamos vivendo agora. Desisti da tese. Li um pouco do livro Pedagogia das encruzilhadas, do Luiz Rufino. Um livro sobre os legados da diáspora africana, sobre a importância dos assentamentos, terreiros e encruzilhadas. Um livro para pensarmos a teoria da vida por uma semântica mais africana. Talvez seja esse o momento de repensarmos o modo como levamos a nossa vida em comunidade.  Sábado, dia 2 Não dormi bem à noite. Fui deitar com a sensação de que as coisas iriam piorar no dia seguinte. Antes de dormir, reli um capítulo do livro Elisabeth Costello, do Coetzee. Em seguida o sono chegou. Tive pesadelos que não me recordo. Às oito da manhã despertei com um carro da polícia dizendo: “Atenção moradores, fiquem em casa. […]

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Sexta, dia 1 No terceiro dia de quarentena eu e minha companheira, Priscila, acordamos um pouco mais tarde, por volta das 9h30. Tomamos café. Ouvimos as primeiras notícias no rádio: “Aumento do número de mortos na Itália”. “O Brasil é o próximo”. “O governo federal minimiza o Corona”. Próximo ao meio-dia fizemos uma sessão de alongamento. Decidimos nos exercitar em casa e evitar a rua e os parques.  Após dias sem ir ao supermercado, optamos por ir apenas um de nós dois. Nesses dias, percebi que esse passou a ser um dos poucos lugares de socialização. Embora a ordem seja a de demorarmos pouco lá dentro, algumas pessoas parecem querer conversar umas com as outras, talvez seja um modo de lidar com o isolamento. Hoje um homem de uns cinquenta anos, sem cesto e sem carrinho de compras percorria os corredores à procura de pessoas para conversar. Dizia coisas do tipo: “Tudo isso vai passar, não vai?”, depois aconselhava a levar determinadas marcas de produtos: “Compra esse porque é bom, eu já usei”. Ninguém lhe dava muito ouvidos, apenas resmungavam qualquer coisa e saíam de perto. Estavam preocupados em pegar as mercadorias e sair logo dali. O homem seguiu pelos corredores à procura de gente. Num outro corredor escutei outros dois funcionários, eles abasteciam as prateleiras de massas. Dois guris, deviam ter entre 18 e 19 anos. Um deles disse: “Meu, tu vai ficar em casa, mesmo?”, outro respondeu: “Tá louco, vou sair por aí espalhando o Corona”. Os dois riram. Fiquei em dúvida se aquilo era uma brincadeira ou não. Em outro corredor, onde abasteciam os produtos de limpeza uma outra funcionária disse: “Não vou passar álcool gel, não precisa”, o outro respondeu: “Quero ver você dizer isso daqui a duas semanas”, a moça riu e perguntou em seguida: “Tá sabendo que já tem três funcionários com o Corona? Sabe o Mudinho? Então, ele tá com o vírus já”. Depois, segui atrás do que falta das minhas compras. Fui para o caixa. A funcionária que me atendeu esboçou um sorriso, mas era um sorriso cansado. Eu retribui. Meu sorriso era de angústia. Durante o resto do dia procurei voltar a minha tese de doutorado. Difícil manter a atenção a uma pesquisa que parece distante do que estamos vivendo agora. Desisti da tese. Li um pouco do livro Pedagogia das encruzilhadas, do Luiz Rufino. Um livro sobre os legados da diáspora africana, sobre a importância dos assentamentos, terreiros e encruzilhadas. Um livro para pensarmos a teoria da vida por uma semântica mais africana. Talvez seja esse o momento de repensarmos o modo como levamos a nossa vida em comunidade.  Sábado, dia 2 Não dormi bem à noite. Fui deitar com a sensação de que as coisas iriam piorar no dia seguinte. Antes de dormir, reli um capítulo do livro Elisabeth Costello, do Coetzee. Em seguida o sono chegou. Tive pesadelos que não me recordo. Às oito da manhã despertei com um carro da polícia dizendo: “Atenção moradores, fiquem em casa. […]

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