Diário da espera | Parêntese

Diário da Espera: Rochele Bagatini

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Diário da Espera: Rochele Bagatini Outra hora. Flexões. Sonho que carrego casas modulares, pequenas, em chumbo, tão pesadas que caminho encurvada, lentamente. Acordo lembrando do Yuval Harari, no Roda Viva, falando que não devemos ensinar chinês ou programação de computador para as crianças, devemos ensinar a flexibilizar a mente. Este será o futuro, aprender, continuamente, a fazer coisas novas, conforme mudarem as necessidades planetárias, ele disse. Se, depois do corona, o mundo como conhecemos não será mais o mesmo, eu, que em poucos dias de isolamento perdi minha renda, preciso aprender depressa a flexibilizar a mente. Caso seja verdade que as mulheres conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo, então estamos em vantagem? Será, Yuval? Mas que tipo de exercícios flexibilizam a mente? Uma hora qualquer de desamparo. Penso se deveria ter pedido demissão daquele emprego sem sentido que me dava estabilidade financeira e desequilíbrio emocional. Eu estaria, como tantos, achando que “pelo menos tenho um emprego”. Depois me conforto pensando que se não tivesse pedido demissão há dois anos, com essa crise anunciada, nunca mais teria coragem. A contingência agora é toda minha, inteira, redonda, imensa, lambuzada. Pelo menos eu tenho um amor. E um próprio. Outro dia com cheiro de clorofina. Com a mão esquerda, higienizada previamente, agarro a guia e não solto até voltar. A mão direita vai abrindo com a chave todas as portas. Fecho com o pé. Meu cachorro se sente muito bem nas ruas vazias. Ele não é muito sociável, nem eu. Eu o puxo para os lugares em que costuma fazer cocô, mas ele me desafia, quer aproveitar o sossego. Uma hora ele cansa também, então voltamos. Passo álcool gel na recepção do prédio, com uma das mãos, a que está com a chave, e besunto também essa. Portas abertas à chave, fechadas com o pé. Agora estamos eu e o cão, num quadrado do hall (1×1) dentro de casa, fechado para a sala por um quadro de mapa mundi. Ali jaz um balde com água sanitária. Torço um pano úmido que coloco no chão, limpo os sapatos e ponho fora de casa. Fecho a porta. Higienizo bem as patas e o resto do corpinho, e libero o cão por uma abertura que faço no vão do quadro de mapa mundi. Resta eu no quadrado. Higienizo chave e guia. Retiro toda a roupa e coloco num saco plástico que deixei antes de sair. Passo o pano com clorofina por todo o quadrado, e com a ponta dos dedos o pinço, atiro no balde. Passo álcool gel na mão e vou para o banho. Três vezes por dia, ele não faz nenhuma necessidade em casa. Revezo estas operações com meu companheiro (substantivo e adjetivo), nossa nova dinâmica familiar amorosa. Sinto falta de quando saíamos os três juntos. Antes, isso tudo se chamava passeio. Um dia líquido. Lavando louça e pensando: agora que as pessoas estão lavando suas próprias louças, cozinhando, arrumando armários, passando roupas, haverá enfim valorização do trabalho doméstico? Logro que, com a prisão nos dando autonomia, conseguiremos […]

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Outra hora. Flexões. Sonho que carrego casas modulares, pequenas, em chumbo, tão pesadas que caminho encurvada, lentamente. Acordo lembrando do Yuval Harari, no Roda Viva, falando que não devemos ensinar chinês ou programação de computador para as crianças, devemos ensinar a flexibilizar a mente. Este será o futuro, aprender, continuamente, a fazer coisas novas, conforme mudarem as necessidades planetárias, ele disse. Se, depois do corona, o mundo como conhecemos não será mais o mesmo, eu, que em poucos dias de isolamento perdi minha renda, preciso aprender depressa a flexibilizar a mente. Caso seja verdade que as mulheres conseguem fazer várias coisas ao mesmo tempo, então estamos em vantagem? Será, Yuval? Mas que tipo de exercícios flexibilizam a mente? Uma hora qualquer de desamparo. Penso se deveria ter pedido demissão daquele emprego sem sentido que me dava estabilidade financeira e desequilíbrio emocional. Eu estaria, como tantos, achando que “pelo menos tenho um emprego”. Depois me conforto pensando que se não tivesse pedido demissão há dois anos, com essa crise anunciada, nunca mais teria coragem. A contingência agora é toda minha, inteira, redonda, imensa, lambuzada. Pelo menos eu tenho um amor. E um próprio. Outro dia com cheiro de clorofina. Com a mão esquerda, higienizada previamente, agarro a guia e não solto até voltar. A mão direita vai abrindo com a chave todas as portas. Fecho com o pé. Meu cachorro se sente muito bem nas ruas vazias. Ele não é muito sociável, nem eu. Eu o puxo para os lugares em que costuma fazer cocô, mas ele me desafia, quer aproveitar o sossego. Uma hora ele cansa também, então voltamos. Passo álcool gel na recepção do prédio, com uma das mãos, a que está com a chave, e besunto também essa. Portas abertas à chave, fechadas com o pé. Agora estamos eu e o cão, num quadrado do hall (1×1) dentro de casa, fechado para a sala por um quadro de mapa mundi. Ali jaz um balde com água sanitária. Torço um pano úmido que coloco no chão, limpo os sapatos e ponho fora de casa. Fecho a porta. Higienizo bem as patas e o resto do corpinho, e libero o cão por uma abertura que faço no vão do quadro de mapa mundi. Resta eu no quadrado. Higienizo chave e guia. Retiro toda a roupa e coloco num saco plástico que deixei antes de sair. Passo o pano com clorofina por todo o quadrado, e com a ponta dos dedos o pinço, atiro no balde. Passo álcool gel na mão e vou para o banho. Três vezes por dia, ele não faz nenhuma necessidade em casa. Revezo estas operações com meu companheiro (substantivo e adjetivo), nossa nova dinâmica familiar amorosa. Sinto falta de quando saíamos os três juntos. Antes, isso tudo se chamava passeio. Um dia líquido. Lavando louça e pensando: agora que as pessoas estão lavando suas próprias louças, cozinhando, arrumando armários, passando roupas, haverá enfim valorização do trabalho doméstico? Logro que, com a prisão nos dando autonomia, conseguiremos […]

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