Folhetim

Duas Vanusas – Capítulo 8: A festa

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Duas Vanusas – Capítulo 8: A festa

Que palhaçada é essa aqui?!

Quando o papai gritou da escada eu me encolhi na cadeira. Odeio quando o papai grita. Quando a Verônica fala demais e interrompe todo mundo. Quando a tia Vanusa me olha como se eu tivesse doente. Quando a mamãe me abraça sem me olhar direito. Quando o papai me puxa pelo braço, chora, e pede desculpas e eu nunca sei do que é. Quando um estranho entra na nossa casa.

Paulo! Porra! O que tu tá fazendo aqui?

Eu é que te pergunto o que você está fazendo aqui depois de sumir por dias, e ainda bancando a vagabunda, Ana?! Dentro da nossa própria casa?!

Nossa casa, Paulo? Nossa casa?!

O que é que você tem na cabeça? Quanto tempo ficou planejando essa escapadinha?

Talvez não o mesmo tempo que tu precisou pra realizar teu sonho de familiazinha perfeita com a sonsa da minha irmã!

Lá vem você de novo com essa história, não esquece que foi você mesma que começou…

Pois é, e agora eu cansei… seu filho da puta!

O papai e a mamãe estavam gritando na escada quando eu vi a mamãe pegando o celular pra ligar pra alguém. O papai tava com muita raiva, quando viu pra quem a mamãe tava ligando pulou em cima dela, o moço estranho pulou em cima do papai e a tia Vanusa pulou em cima do moço. No meio do barulho a Vanusa começou a correr de um lado pro outro no pátio e eu puxei a Verô pelo braço pra tirar a gente do barulho. Ela tava chorando e pedindo pra parar, mas eles não paravam. Levei ela pra fora, peguei a boneca dela e perguntei se ela queria brincar comigo, ela não parava de chorar e passava a mão no olho o tempo todo. Eu tava com medo e quando eu fico com medo eu nunca sei o que fazer.

Me deu uma vontade estranha de sair correndo, de abrir o portão e sair correndo. Mas eu não podia deixar a mana sozinha chorando. Puxei ela pra perto da areia da Vanusa. A Verô e a Vanusa são amigas, a gente tem que ficar junto enquanto o barulho não acaba. Peguei um graveto pra brincar de escrever com a mana. Dei o graveto na mão dela e tapei as nossas orelhas juntinhos. Ela começou a desenhar um monte de círculos. Uns dentro dos outros e mais outros fora. Muitos círculos. Pouco tempo depois a Vanusa veio perto e sentou dentro de um círculo grande como se fosse em cima de uma almofada.

O barulho ficava grande e pequeno, grande e pequeno, igual os círculos da Verô, teve uma hora que ficou um pouco pequeno e aí fez um pá bem forte e depois tocou a campainha. Na hora que a campainha tocou todo mundo ficou em silêncio. Eu não sabia quem era. A campainha tocou de novo e eu escutei um shhhhhiiii, uns passos na cozinha e a tia Vanusa indo abrir o portão:

Oi, querida, que surpresa!

Você não me ligou ontem, fiquei preocupada.

Ah, está tudo bem, tudo na mais perfeita ordem, só me distraí um pouco com a família.

Vim como prometido, com todas as ferramentas pra montar a bicicleta da tua afilhada.

Muito obrigada, amor, entra, deixa eu te apresentar minha família.

É, porque fica dizendo pra marcar e se esconde atrás da desculpa da quarentena…

Pessoal, essa daqui é a Cláudia, vocês sabem… minha namorada.

Oi, Cláudia!!!

Essa é a Ana, minha irmã, o Paulo, meu cunhado, e o Lúcio…

Oh, Lúcio, não sabia que vocês se conheciam, quanto tempo…

Pois é, Claudinha, eu e o Paulo temos uma paixão em comum.

Aaaaaaah, legal. O quê?

Ciclismo, oras.

Uma moça muito bonita entrou no pátio. Ela tirou um monte de coisas mágicas de dentro da bolsa dela e sorrindo começou a montar a bicicleta da mana. Eu nem sabia que dentro de uma caixa cabia tanta coisa. O papai, a mamãe, ninguém falava nada. Acho que todo mundo ficou cansado de gritar e fazer barulho. Todos ficavam se olhando em silêncio enquanto a moça estava fazendo uma bicicleta inteirinha. Quando ela terminou a Verô esqueceu a boneca de rodinhas na areia da Vanusa e ficou pulando pedindo pra andar na bicicleta lá fora, por favor, por favor, por favorzinho.

O papai e a mamãe não falavam nada, só ficavam lá olhando tudo acontecer. A tia Vanusa abaixou, pegou na mão da mana e perguntou se ela queria testar o presente dela na rua. A moça bonita, a tia, a Verô e eu fomos lá fora com a bicicleta. O amigo da mamãe ficou de longe na calçada, e o papai e a mamãe tavam dentro de casa quando a mana subiu na bicicleta. Ficar calma e não colocar a mão na máscara era o que a tia mais repetia. Ela foi pedalando e a tia Vanusa com uma mão segurando no banco e a outra no guidão pra mana não cair. Uma. Duas. Três vezes. Mais uma volta e a tia soltou o guidão e foi acompanhando a mana com a voz.

Eu estou aqui, filha. Bem aqui contigo. Sempre aqui ao teu lado.

Você já viu uma menina pequena andando de bicicleta? Parece um acontecimento meio bizarro, mistura de algo natural por ter pernas, mas desesperado por lhe faltar confiança. Verônica era tão pequena e mesmo assim ia tão rápido, parecia que a Travessa era pequena para ela. Pedro que sempre quis ver a mana feliz sabia que aquilo era uma verdadeira festa. Uma rua, uma menina e uma bicicleta. 

Você já viu uma galinha voar?


Nathallia Protazio é pernambucana, farmacêutica vacinadora, e depois de ter morado em muitos lugares, incluindo São Paulo e Lausanne, Suíça, hoje vive em Porto Alegre. Lançou “Aqui dentro” pela editora Venas Abiertas. Disponível pelo Instagram da própria autora: @nathalliaprotazio.escritora

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