Filosofia na vida real | Parêntese

Eduardo Vicentini: Até que a razão os separe. Cena 2: Christine de Pizan

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Eduardo Vicentini: Até que a razão os separe. Cena 2: Christine de Pizan Nesta seção, ao longo de dez ensaios, o professor de filosofia da UFSM propõe uma curiosa incursão filosófica sobre nada menos que o casamento. A cada semana, um capítulo novo, a partir de pensadores e pensadoras que se dedicaram ao tema. Leia aqui o anterior, sobre São Tomás de Aquino. Detalhe de uma miniatura de Christine de Pizan apresentando seu manuscrito à Rainha Isabel da Baviera, França (Paris), c. 1410 – c. 1414. British Library. Vez por outra me pego catalogando palavras que grudam na imaginação. O substantivo feminino “querela” é uma das minhas prediletas, junto com as pomposas primas “quarrel” e “querelle”. É estimulante perceber suas distintas camadas de significados, amalgamando na mesma palavra as noções de disputa acirrada e controvérsia com queixa e lamento. Querelas são reclamações lamentosas, debates que falam ao pé do ouvido das emoções humanas, são controvérsias que importam.  Para viver uma vida examinada querelar é preciso. E como querela pouca é bobagem Christine de Pizan (1364-1430) é protagonista não apenas de uma, mas sim de duas controvérsias seminais para a discussão filosófica do casamento, na antevéspera da Renascença e muito além. A primeira dessas disputas leva o nome de Querelle du Roman de la Rose. Para bem compreender a sua origem precisamos retroceder quase um século do nascimento de Christine, quando da composição do Roman de la Rose, iniciado por Guilherme de Lorris (circa 1200 – 1238) e finalizado por Jean de Meung (circa 1240 – 1305).  Considerado um best-seller medieval, as 21.782 linhas versificadas do Roman de la Rose circulavam com luxuosas iluminuras entre os chiques e famosos, poderosos e religiosos da Europa letrada. A julgar pelas três centenas de manuscritos originais restantes, produzidos entre os séculos XIII e XVI e que resistiram ao impacto do tempo, pode-se afirmar que o Roman de la Rose rivalizava em prestígio e tiragem com apenas outra obra secular em línguas vernáculas, a justamente famosa Divina Comédia de Dante.   Em franco contraste com o plano original dos primeiros 4.058 versos deixados por Guilherme de Lorris, que encaixavam-se na tradição bem comportada do amor cortês, a contribuição de Jean de Meung, com seus vultosos 17.724 versos, dá uma coloração totalmente diversa a obra, mesclando elementos de sátira, obscenidades e pretensões enciclopédicas, recuperando fontes clássicas e medievais na discussão de trend topics como procriação, celibato, casamento, prostituição e homossexualidade.  O que nos dá uma explicação para tanta iluminura e tanta cópia de manuscrito. Sexo sempre vendeu bem entre gregos e troianos, na antiguidade ou no medievo. O problema é que todo este conteúdo, digamos, sensível, vinha emoldurado em uma vetusta matriz de misoginia e misogamia, apresentando o casamento como um ninho de perigos e a mulher, em geral, como infiel, enganadora, vil, faladora, vaidosa e lasciva. No episódio sobre São Tomás de Aquino falamos rapidamente do crédito da primeira carta de São Paulo aos Coríntios na feição de uma tradição antimatrimonial que, de quebra, não tinha lá em alta conta o comportamento das mulheres. É chegada a hora de acertar as contas […]

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Nesta seção, ao longo de dez ensaios, o professor de filosofia da UFSM propõe uma curiosa incursão filosófica sobre nada menos que o casamento. A cada semana, um capítulo novo, a partir de pensadores e pensadoras que se dedicaram ao tema. Leia aqui o anterior, sobre São Tomás de Aquino. Detalhe de uma miniatura de Christine de Pizan apresentando seu manuscrito à Rainha Isabel da Baviera, França (Paris), c. 1410 – c. 1414. British Library. Vez por outra me pego catalogando palavras que grudam na imaginação. O substantivo feminino “querela” é uma das minhas prediletas, junto com as pomposas primas “quarrel” e “querelle”. É estimulante perceber suas distintas camadas de significados, amalgamando na mesma palavra as noções de disputa acirrada e controvérsia com queixa e lamento. Querelas são reclamações lamentosas, debates que falam ao pé do ouvido das emoções humanas, são controvérsias que importam.  Para viver uma vida examinada querelar é preciso. E como querela pouca é bobagem Christine de Pizan (1364-1430) é protagonista não apenas de uma, mas sim de duas controvérsias seminais para a discussão filosófica do casamento, na antevéspera da Renascença e muito além. A primeira dessas disputas leva o nome de Querelle du Roman de la Rose. Para bem compreender a sua origem precisamos retroceder quase um século do nascimento de Christine, quando da composição do Roman de la Rose, iniciado por Guilherme de Lorris (circa 1200 – 1238) e finalizado por Jean de Meung (circa 1240 – 1305).  Considerado um best-seller medieval, as 21.782 linhas versificadas do Roman de la Rose circulavam com luxuosas iluminuras entre os chiques e famosos, poderosos e religiosos da Europa letrada. A julgar pelas três centenas de manuscritos originais restantes, produzidos entre os séculos XIII e XVI e que resistiram ao impacto do tempo, pode-se afirmar que o Roman de la Rose rivalizava em prestígio e tiragem com apenas outra obra secular em línguas vernáculas, a justamente famosa Divina Comédia de Dante.   Em franco contraste com o plano original dos primeiros 4.058 versos deixados por Guilherme de Lorris, que encaixavam-se na tradição bem comportada do amor cortês, a contribuição de Jean de Meung, com seus vultosos 17.724 versos, dá uma coloração totalmente diversa a obra, mesclando elementos de sátira, obscenidades e pretensões enciclopédicas, recuperando fontes clássicas e medievais na discussão de trend topics como procriação, celibato, casamento, prostituição e homossexualidade.  O que nos dá uma explicação para tanta iluminura e tanta cópia de manuscrito. Sexo sempre vendeu bem entre gregos e troianos, na antiguidade ou no medievo. O problema é que todo este conteúdo, digamos, sensível, vinha emoldurado em uma vetusta matriz de misoginia e misogamia, apresentando o casamento como um ninho de perigos e a mulher, em geral, como infiel, enganadora, vil, faladora, vaidosa e lasciva. No episódio sobre São Tomás de Aquino falamos rapidamente do crédito da primeira carta de São Paulo aos Coríntios na feição de uma tradição antimatrimonial que, de quebra, não tinha lá em alta conta o comportamento das mulheres. É chegada a hora de acertar as contas […]

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