Ensaio

A astúcia brasileira (Parte 4)

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A astúcia brasileira (Parte 4)

Roberto Schwarz

Roberto Schwarz (1938) faz parte de uma linhagem nobre do ensaio crítico com base no marxismo heterodoxo mundial e, ao mesmo tempo, de uma tradição crítica associada ao pensamento social brasileiro. Esta tradição contribuiu e vem contribuindo decisivamente para o pensamento social do mundo todo, através de uma variação de pressupostos teóricos e críticos, influenciada também pelo marxismo heterodoxo internacional. Assim, podemos pensar em Schwarz através destes dois prismas – um, associado à vanguarda do pensamento marxista heterodoxo; outro, à vanguarda do pensamento social brasileiro. 

No primeiro caso, como ele mesmo o afirma, é de importância crucial a leitura de Marx e dos teóricos associados ao marxismo cultural, como Lukács, Adorno e Benjamim; no segundo, podemos destacar Anatol Rosenfeld e, em especial, Antonio Candido que, de certa maneira, contribuiu para a criação de uma escola própria de pensamento capaz de apreender o enlace, complexo e dialético, entre forma literária e sociedade. Antonio Candido é um dos principais protagonistas de um processo de longa acumulação crítica no Brasil, em especial, centrada na Universidade do Estado de São Paulo (USP), em autores como Francisco de Oliveira, José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia de Carvalho, Paul Singer, Michael Löwy, Bento Prado Junior, entre outros. 

Muito do que se desenvolveu do melhor pensamento crítico no Brasil, de cunho cosmopolita, com rigor acadêmico e espírito de invenção, passa por estes autores mencionados. Além do mais, alguns dos seus principais ensaios são o resultado direto de diálogos de ideias permanentes com eles, algo bem descrito no texto “Um seminário de Marx” (1999), em que Schwarz descreve a constituição do grupo de estudos centrado na obra de Marx e que desenvolveu alguns dos melhores e mais originais ensaios e trabalhos analíticos do pensamento crítico brasileiro e mundial. 

É dentro deste quadro, que une marxismo heterodoxo mundial e acumulação crítica do pensamento social da USP, que Roberto Schwarz publicou alguns dos principais ensaios críticos sobre a relação entre as formas artísticas e a sociedade brasileira, ambas inseridas de forma singular na lógica do capitalismo internacional. Isso envolve literatura, teatro, cinema, arquitetura e movimentos estéticos associados também à canção popular. Alguns dos seus ensaios integram todas estas dimensões da realidade estética e social, ao mesmo tempo em que valem por uma tentativa de interpretação do Brasil de forma original, sem ceder aos nacionalismos ingênuos, nem tampouco aos internacionalismos apressados. 

O Brasil, ou melhor, a sociedade brasileira é analisada de forma realista, concreta e crítica, como parte integrante do capitalismo internacional, embora com uma forma de integração singular, desigual e dependente, que gera formas artísticas que podem revelar coisas novas a respeito do próprio capitalismo internacional. É este o sentido de ensaios como “Ideias fora do lugar”, do livro “Ao vencedor, as batatas” (1977) e “Nacional por subtração”, do livro “Que horas são?” (1987). Neles há uma abordagem que abrange diferentes aspectos da realidade brasileira sob a ótica de um crítico marxista atento às movimentações concretas do mundo e tendo como mediação central as formas artísticas, num limiar entre abordagem estilística e reflexão histórico-social. 

A sua obra tem como um dos objetos de análise principal a literatura de Machado Assis, o grande escritor brasileiro da segunda metade do século XIX, autor dos célebres “Dom Casmurro” (1899), “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891) e “Memorial de Aires” (1908), muito provavelmente o principal romancista brasileiro, ao lado de Guimarães Rosa. Sobre Machado de Assis, Roberto Schwarz publicou “Ao vencedor as batatas” (1977), em que analisa também a obra de José de Alencar; o clássico “Um mestre na periferia do capitalismo” (1990), além de uma série de ensaios específicos, dentre os quais podemos destacar “Duas notas sobre Machado de Assis” (“Que horas são”, 1987) e “Martinha versus Lucrécia” (“Martinha versus Lucrécia”, 2012), entre muitos outros. 

Além de Machado de Assis, Schwarz também analisou importantes escritores do modernismo brasileiro como, por exemplo, Oswald de Andrade, poeta de peso, idealizador da poesia pau-brasil e do manifesto antropofágico, duas das manifestações mais importantes da literatura e arte modernas brasileiras, muito festejado pelos movimentos concretista e tropicalista, entre as décadas de 50 e 60. Estamos nos referindo ao ensaio “A carroça, o bonde e o poeta modernista” (1987), como exemplar análise da relação entre forma artística e processos sociais. A imagem justaposta de forma tensa entre o antigo e o novo, nas imagens do transporte a cavalo e do trilho do trem atravessando tudo, sem com isso se estabelecer um antagonismo real, é um dos grandes achados da poética Oswaldiana e da análise de Roberto Schwarz. 

Em relação ao contexto da década de 60, temos o importante ensaio: “Cultura e Política: 1964-1969”, do livro “O pai de família e outros estudos” (1978), que une crítica social sofisticada com análise aguda das formas artísticas mais importantes daquele momento no Brasil, como nos casos do Teatro Opinião, Teatro de Arena, Teatro Oficina, nas peças e figuras de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna, José Celso Martinez; no cinema novo de Glauber Rocha; no papel dos Centros Populares de Cultura, da pedagogia do oprimido de Paulo Freire e nas ambivalências alegóricas do tropicalismo. Num só ato, Roberto Schwarz apresenta de forma crítica um dos períodos mais fecundos da vida cultural e social brasileira, sem negar suas tensões, conflitos e jogos de força, além dos notáveis resultados artísticos. Ainda dentro deste contexto, ainda hoje vivo e em aberto, cabe destacar também o ensaio a respeito do movimento concretista dos poetas e críticos Augusto de Campos e Haroldo de Campos, com quem debateu de forma franca e contundente, eu me refiro ao ensaio “Marco histórico” (Que horas são?, 1987). 

Já no caso de obras mais contemporâneas, podemos mencionar o texto a respeito do livro “O elefante” do poeta Francisco Alvim (O país do elefante, 2002); dos romances “Estorvo” (Um romance de Chico Buarque, 1999) e “Leite derramado” (Cetim laranja sobre fundo escuro, 2012) de Chico Buarque; do romance “Cidade de Deus”, de Paulo Lins (Cidade de Deus, 1999), que viria a se transformar no consagrado filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles; da surpreendente e comovente retomada do documentário “Cabra marcado pra morrer” de Eduardo Coutinho (“O fio da meada”, 1987). 

Seu último ensaio de grande fôlego “Verdade tropical: um percurso do nosso tempo” (2012), sobre o livro de ensaios “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso (1995) representa uma lufada de liberdade de pensamento e crítica incomum no campo artística e cultural brasileiro que, nas últimas décadas, tem se acanhado demais, orientado pelo discurso triunfante do multiculturalismo, do capitalismo neoliberal e da cultura de massas. De repente, o contexto do período que envolve esquerda política e cultural, ditadura militar de 64, luta armada revolucionária e o movimento tropicalista voltou a ser denso, complexo, ambivalente, em aberto, em suma, muito além do discurso esquemático dos vitoriosos, incluindo o do autor de Verdade Tropical, que passou a reduzir a esquerda dos CPCs, Teatro do Oprimido, Paulo Freire, Opinião, UNE, ligas camponesas, movimentos operários, marxismo culto, heterodoxo e amigo das vanguardas, a um todo homogêneo, panfletário, incapaz de lidar com a problemática da forma artística, além de autoritário, alinhado ao nacionalismo mais ingênuo e uma espécie de obstáculo ao pensamento e à liberdade individual (leia-se: burguesa), num falseamento da heterogeneidade real da vida política, social e estética do país naquele momento, em especial da esquerda política e cultural. 

A importância dessa reabertura crítica de um passado ainda presente e real é sem par. Nada pode ser mais mortificante para uma geração de artistas, intelectuais e críticos do que o conformismo e a naturalização do discurso dos vitoriosos que tendem a retirar do contexto de disputa política e estética o seu caráter arbitrário, heterogêneo, associado à disputa, ao perigo, ao movimento, por estar em aberto. Isso vale e muito para o contexto complexo de invenção, cosmopolitismo e desejo de subversão social, política e estética das movimentações da esquerda cultural da década de 60, em especial, o teatro de arena, o Opinião, os CPCs, a UNE, Paulo Freire, os primeiros discos de Edu Lobo, Augusto Boal, que ainda está em aberto. O ensaio de Schwarz realiza aquilo que diz Benjamim nas “Teses sobre o conceito de história”:  “Ao materialismo histórico interessa-lhe fixar uma imagem do passado tal como ela surge, inesperadamente, ao sujeito histórico no momento do perigo. O perigo ameaça tanto o corpo da tradição como aqueles que a recebem”

Assim, o quadro se fecha de forma lúcida e consistente, com a formação na tradição do marxismo cultural heterodoxo (Benjamim, Lukács, Adorno), na acumulação crítica dos teóricos da USP (Rosenfeld, Candido, Giannotti, Oliveira, Cardoso, Carvalho), na pluralização de formas artísticas analisadas (literatura, teatro, cinema, arquitetura, canção popular), na importância da figura de Machado de Assis (Ao vencedor as batatas, Um mestre na periferia do capitalismo), nos ensaios clássicos de interpretação do Brasil (Ideias fora do lugar, Nacional por subtração), na atenção ao modernismo brasileiro (A carroça, o bonde e o poeta modernista ), na aguda e pertinente análise do contexto social e artístico complexo brasileiro que envolve esquerda cultural e ditadura militar (Cultura e Política: 1964-1969), culminando com a consolidação do neoliberalismo como ideologia hegemônica, abraçada, inclusive, por protagonistas importantes dessa mesma esquerda cultural, como a que ele apresenta no ensaio sobre o livro Verdade Tropical (Verdade Tropical: um percurso do nosso tempo). 

Abrangendo artistas centrais da segunda metade do século XIX e muito modernos (Machado de Assis), da primeira do XX no modernismo brasileiro (Oswald de Andrade), das movimentações de vanguarda da esquerda cultural das décadas de 50 e 60 (concretismo, CPCs, Teatro de Arena, Teatro Oficina, Opinião, Tropicalismo, Cinema Novo) às obras mais contemporâneas (Paulo Lins, os romances de Chico Buarque, a poesia de Francisco Alvim, o livro de ensaios de Caetano Veloso), tudo integrado às movimentações históricas complexas do capitalismo internacional, podemos certamente ecoar o que disse sobre ele o historiador inglês Perry Anderson: trata-se, sem sombra de dúvida, “do mais acurado crítico dialético do mundo todo, desde Adorno”.


Marcos Lacerda é sociólogo e ensaísta, com doutorado em sociologia pelo IESP-UERJ. Foi Diretor nacional de Música da Funarte, de 2015 a 2017. No âmbito da sociologia e teoria social, publicou os livros “A sociedade das tecnociências de mercadorias: introdução à obra de Hermínio Martins” (2020) e “Sociologia das tecnociências: ensaios de teoria social portuguesa” (2020, com André Magnelli). No âmbito da crítica e do ensaio cultural, publicou como organizador o livro “Música: Coleção ensaios contemporâneos” (2016) e como autor “Hotel Universo: a poética de Ronaldo Bastos” (2019). Atualmente, faz uma pesquisa sobre a obra de Vitor Ramil e um estágio de pós-doutorado em sociologia no PPGS/UFPEL. 

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