Ensaio

A escritura de Clarice em busca do real

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A escritura de Clarice em busca do real

A realidade não tem sinônimos
Clarice Lispector

Treze nomes, treze títulos. Esta foi a resposta da escritora Clarice Lispector, em sua última entrevista, dada ao jornalista Júlio Lerner, da TV Cultura de São Paulo, quando este lhe perguntou o nome da obra que acabara de escrever. A obra, posteriormente, viria a se chamar A Hora da Estrela, mas traz, efetivamente, na folha de rosto treze títulos: A culpa é minha ou Ela que se arranje ou Quanto ao futuro ou Assovio no vento escuro ou Saída discreta pela porta dos fundos, entre outros; cada título, um gesto de interpretação. A Hora da Estrela, último romance publicado em vida pela escritora, expressa a maturidade de uma reflexão sobre a linguagem desenvolvida em toda sua obra desde o primeiro romance, Perto do Coração Selvagem

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A realidade não tem sinônimos
Clarice Lispector

Treze nomes, treze títulos. Esta foi a resposta da escritora Clarice Lispector, em sua última entrevista, dada ao jornalista Júlio Lerner, da TV Cultura de São Paulo, quando este lhe perguntou o nome da obra que acabara de escrever. A obra, posteriormente, viria a se chamar A Hora da Estrela, mas traz, efetivamente, na folha de rosto treze títulos: A culpa é minha ou Ela que se arranje ou Quanto ao futuro ou Assovio no vento escuro ou Saída discreta pela porta dos fundos, entre outros; cada título, um gesto de interpretação. A Hora da Estrela, último romance publicado em vida pela escritora, expressa a maturidade de uma reflexão sobre a linguagem desenvolvida em toda sua obra desde o primeiro romance, Perto do Coração Selvagem

Clarice perseguiu, em sua literatura, o espaço da experiência humana impossível de ser traduzido em palavras. No dizer dela, a coisa. Buscou expressar o indizível e, ao fazê-lo, nos deu o silêncio, ou os limites da linguagem, ali onde ela toca o real. Para a teoria da Análise do Discurso o silêncio é o real do discurso. Essa experimentação Clarice fez de muitas formas, mas de maneira muito marcante através de uma pontuação inusitada. Em A Paixão Segundo GH, por exemplo, ela marca esse momento, já no início do romance, com a presença de seis travessões que introduzem a personagem GH:

 _ _ _ _ _ _estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.

GH vem de uma experiência da ordem do indizível e vem procurando as palavras para relatá-la, para organizar o que viveu.  Ela quer compartilhar a experiência, mas não consegue fazê-lo porque há um hiato entre o ser e o sujeito que é exatamente sua cisão pelo simbólico. A experiência é assustadora porque GH não consegue elaborá-la por meio de palavras. Sem encontrar as palavras, prefere chamar a esta experiência de desorganização, pois ver-se como sujeito desta experiência implica em desorganizar o mundo tal como estruturado pela linguagem. 

A separação irremediável entre a ordem das coisas e a ordem do discurso está relacionada ao fato de que nem tudo na experiência humana é passível de ser simbolizado. E, uma vez simbolizado, sofre, necessariamente, uma injunção à interpretação. Embora a palavra não dê conta da experiência humana, ela cria, contudo, o mundo a sua volta de tal modo que a realidade se torna o que é dito, promovendo assim uma mudança na própria experiência subjetiva, um corte profundo entre o que é vivenciado com ou sem palavras;

É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. (Perto do Coração Selvagem).

Essa impossibilidade de tudo dizer é o que move a literatura de Clarice e faz com que ela, em busca dos espaços de silêncio, os cerque com palavras para que o silêncio possa ser percebido. Deixa claras, deste modo, as indissociáveis relações entre silêncio e linguagem. Trabalhando exatamente nos limites da linguagem, Clarice nos leva até suas bordas, até aquilo que ela não alcança; nos dá com isso o indizível, ou o real do discurso. Em busca do indizível, Clarice acaba por aprofundar, de modo inusitado na literatura, uma reflexão sobre a linguagem, de tal modo que pode se dizer que é a linguagem mesma o grande objeto da escritura clariceana. 

Em A maçã no escuro, a reflexão sobre a linguagem é retomada através do personagem Martim. Em fuga, após acreditar ter matado a própria mulher, Martim busca um novo início. Para isto abandona a linguagem, e parte em busca de uma nova linguagem que possa lhe permitir ser um novo sujeito, obtida através da experiência do silêncio:

Não sei mais falar, disse então para o passarinho, evitando olhá-lo por uma certa delicadeza de pudor.

Só depois pareceu entender o que dissera, e então olhou face a face o sol. “Perdi a linguagem dos outros”, repetiu então bem devagar (…)

Perdendo a linguagem dos outros o homem percebe não ter mais compreensão de nada: Porque mesmo a compreensão a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras. Sem linguagem e sem compreensão, o homem ganha o mundo. – E não compreender estava de súbito lhe dando o mundo inteiro. Martim perde a linguagem e recupera, deste modo, a unidade com o mundo, própria do ser em sua imanência. Martim recupera o momento de antes do pensamento, antes da interpretação, logo, antes da cisão do sujeito pela linguagem. 

Ser sujeito é assujeitar-se, necessariamente, a uma determinada rede discursiva. A experiência do ser é de antes da linguagem. A entrada na linguagem cinde o sujeito inevitavelmente deste momento mágico de antes das palavras. Porque o sujeito, ao nomear-se, entra no simbólico e, fatalmente, utiliza a linguagem dos outros. Somos constituídos pelo olhar e pela linguagem dos outros.

É ao aproximar-se do real, nesse trabalho com o silêncio, que a literatura de Clarice é especialmente inovadora; também nos é enriquecedora porque, ao expor o fracasso da linguagem em expressar a plenitude do que vivenciamos, Clarice nos leva a regiões desconhecidas de nós onde a linguagem não faz morada porque, como ela própria diz: Viver não é relatável.


Noeli Lisbôa. Jornalista e Mestre em Letras/UFRGS, autora de A pontuação do silêncio – uma análise discursiva da escritura de Clarice Lispector (Editora Pontes, 2020).

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