Ensaio

A glória e a miséria de línguas em vias de extinção

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A glória e a miséria de línguas em vias de extinção
A chegada em Pointe-à-Pitre /
Lapwent Guadalupe (Antilhas Francesas)

Estas “recordações de estrada” partiram de interrogações minhas sobre as possíveis razões pelas quais o bretão está enfrentando a perspectiva de um iminente desaparecimento no noroeste da França enquanto o créole continua bem vivo no Caribe Francês.

Depois de cinco anos em licença para realizar um doutorado no Brasil, retomei minhas atividades de professor de ensino médio em escolas públicas da França, meu país de origem. Pouco antes de eclodir a pandemia, fui nomeado para lecionar em Guadalupe, no Caribe francês.

Algo que me impressionou, enquanto bretão, de cepa e de coração (porém que vergonhosamente só conhece meia dúzia de palavras do idioma materno dos avós), é a amplitude do uso do créole (kréyol) nas conversas entre nativos, qualquer que seja o espaço de comunicação. Nas ruas de Guadalupe, o que se ouve é principalmente o créole. Também nas lojas, quando o vendedor e o comprador são guadalupenses, as transações são mais frequentes no idioma.

Mal iniciei os trabalhos, em meados de janeiro, e já me vi envolvido nas manifestações contra a reforma da aposentadoria apresentada pelo governo Macron. Os inflamados discursos militantes fizeram-se primeiro em francês, enquanto os sindicatos nacionais ainda dirigiam as operações. Entretanto, à medida que os sindicatos locais assumiam a liderança do protesto, o créole se impôs como instrumento de comunicação, ou de propaganda, de sorte que, no início de fevereiro, quando o movimento de rejeição da proposta de uma nova legislação pensionista atingiu seu auge, nove entre dez discursos contra o governo eram em créole.

Na sala de aula, é verdade que é raro ouvir os alunos trocarem figurinhas em créole; já nos corredores e no pátio, é muito comum. Ou seja, a escola nas Antilhas Francesas não é um lugar ou, melhor dizendo, não é mais um lugar de exclusão linguística ou cultural. Prova disto é que o créole está incluído no currículo dos ensinos fundamental e médio, agora que se tem beneficiado de um sistema de uniformização das práticas linguísticas, com uma grafia e uma pronúncia mais ou menos estabilizadas, implementadas pelos próprios intelectuais (linguistas) martinicanos e guadalupenses. 

Olhando para os perfis dos alunos na base de dados do liceu, pude constatar que a maioria escolheu estudar o créole em vez de uma segunda língua estrangeira como o espanhol, o italiano ou o alemão. Aliás, os sindicatos locais mais radicais exigem que as aulas (de matemática, de ciência, de história, etc.) passem a ser ministradas em créole, argumentando que o uso do francês nas práticas pedagógicas só prejudica os alunos, para quem a língua de ensino não deveria ser uma língua estrangeira (no caso o francês), mas sim a língua do círculo familiar (o kréyol). Alguns extremistas (?) independentistas chegam a dizer que, nesta região do planeta, o francês só é de interesse secundário, e que seria melhor dedicar o tempo dos estudantes à aprendizagem do inglês ou do espanhol.

Um reconhecimento oficial tardio demais

Ao vencedor, as palavras 

Em comparação, na Bretanha, região ao noroeste da França, é raro ouvir conversas em bretão na rua, nos comércios, nos cafés, na igreja ou em outros lugares de convivência social. Hoje, é principalmente no interior, e em algumas zonas bastante circunscritas do litoral, especialmente no departamento do Finistère, que se pode ainda escutar pessoas conversarem no idioma. Minha avó dizia que o lugar em que mais ouviu bretão foi nos hospitais. Ali, na ala geriátrica, chegavam anciãos que haviam tido a memória afetada e já não falavam mais francês. Só se lembravam da língua materna de antanho. Para alguns, as últimas manifestações de comunicação, os gritos, os xingamentos, a cólera contra o mundo, a velhice, a doença e a morte se davam exclusivamente em bretão.

Conviria se perguntar por que o créole resistiu (como o basco e o catalão na Espanha) e está bem vivo nas Antilhas Francesas enquanto o bretão se tornou praticamente um idioma moribundo. Não vou entrar nesta discussão que nos levaria muito longe e que tem a ver com parâmetros étnicos, demográficos, geográficos, históricos nas situações da cultura regional em relação com a cultura que domina o cenário nacional. Aqui basta dizer que, como é sempre o caso, os destinos políticos e linguísticos dessas parcelas do território nacional se construíram ou se destruíram juntos. Mas houve diferenças notáveis, justamente, nesta história das línguas.  

Por exemplo, o bretão começou a ser combatido com mais força centralizadora pelos revolucionários, em parte porque era associado aos movimentos de resistência à república (as chouanneries), submetidos a uma fração do clérigo e à nobreza.  No Caribe, quem incentivou indiretamente o créole em reação com a brutalidade da colonização foi Napoleão, que restabeleceu a escravidão nas Antilhas Francesas quando tinha sido abolida pelos revolucionários¹.

Enfim, resta que as populações nativas das Antilhas conseguiram manter o uso da língua materna. Sem dúvida, uma prova a mais da resiliência de suas populações, em grande parte, afrodescendentes.  Mas, enquanto nunca houve hiato real no uso do créole (que nasceu no Caribe com a colonização europeia), a Bretanha (cujo idioma, de raiz celta, se ancorava em tempos anteriores à formação do território nacional) perdeu uma geração inteira de locutores, a do meu pai. Ele, aliás, relata que se um aluno falasse no recinto da escola em bretão era castigado e exposto com um chapéu de burro enfiado na cabeça no canto do pátio. Os pais, inclusive, se recusavam a ensinar palavras bretãs aos filhos com receio de comprometer suas chances de progredir na vida. Conta também que havia, em certos lugares públicos, cartazes que avisavam: “Proibido cuspir no chão e falar bretão”… Hoje, apesar das denegações dos militantes mais acirrados, o bretão é, a meu ver, uma língua já semi-extinta, em constante estado de reanimação, praticamente comatosa, e não são as 55 escolas bilíngues Diwan e seus 4337 alunos (2019) que conseguirão salvar a situação.

Na encruzilhada das memórias, das histórias dos povos, das pessoas e de seus lugares

O que me resta, enquanto filho de pai bretão, neto de avós bretões e sobrinho de tias e tios bretões, são fragmentos de cantigas, cirandas ou canções entoadas pelos anciãos da família, expressões, entonações e algumas palavras que ainda se usam nas conversas, assim como um tipo de xibolete para reconhecer os seus ou se fazer reconhecer neles. Uma palavra celta entremeada na conversa, uma inversão da estrutura sintática, uma acentuação na primeira sílaba das palavras, podem emitir sinais de pertencimento ao espaço, material ou imaterial, regional. 

Há, entretanto, uma parcela do vocabulário que se capturou e ficou preso nas redes dos nomes dos lugares, e é neste entrevero das memórias, a memória do lugar e a memória das pessoas, a memória coletiva e as memórias individuais, que se coalesce hoje meu contato mais regular, e talvez mais instigante, com a língua regional, dos meus ancestrais.

Na Bretanha, uma grande maioria dos topônimos é, logicamente, de origem bretã. Nas placas de sinalização, as indicações francesas estão em cima, dominantes, e a denominação bretã embaixo, para agradar aos autóctones. O que acontece, afinal de contas, é que o bretão se cristalizou na paisagem toponímica, mas sua pronúncia foi afrancesada e, sobretudo, a maioria dos nativos mais jovens sabe a que lugar se refere o topônimo, mas ignora seu significado e não saberia dizer sua etimologia.  É, pois, parte da história do lugar embutida no seu nome que se foi, salvo para os anciãos e alguns poucos, mais empolgados que outros em preservar o patrimônio cultural da região.  Minha casa na Bretanha fica em Goas Treiz – a passagem do brejo –, e o brejo está ainda lá para fazer jus ao nome. Uma de minhas tias mora na rua de Dour ar Vrann – a lagoinha dos corvos –, alguns corvos aparecem de vez em quando, mas o olho-d’água que estava lá para abeberar o gado já se foi. Outra tia mora na rua Trovern Bihan – a mata pequena –, e ainda há uma mata pequena por ali. Coz Forn é o velho forno, Straed ar Milin, a rua do moinho, etc.

Já em Guadalupe, reencontrei-me com o mesmo fenômeno, os nomes são evocadores, Trou aux chats (gruta dos peixes), Pitt a coq (a arena para rinhas de galos), todos evocando algum passado do lugar, alguma particularidade da sua história. Só que, diferente do que está acontecendo na Bretanha, a maior parte das pessoas nas Antilhas conhece o significado do nome, mesmo que tenha sumido a particularidade de que se originou o topônimo (as rinhas de galo, por exemplo). 

Lembro-me, a propósito, de uma entrevista com Anjela Duval, poeta bretã já bem velhinha, que sempre escreveu na língua materna. Disse que estava meio perdida com a revolução agrícola na região, pois estavam arrasando as cercas e aplanavam a terra, tapando as valas que separavam os campos antigos. Daí, com o remembramento, agrupando as parcelas para fazerem campos ainda maiores, os próprios nomes daquelas parcelas originais se misturavam e não se sabia mais quem era quem. Ou seja, para ela, no raio de vinte quilômetros, cada campinho tinha seu nome, que conhecia como se fosse o nome de um membro da família; um se chamava pela presença de tal árvore, outro porque abrigava raposas, outro pelo declive, cada um com sua particularidade máxima expressada no nome, e tudo isto já estava se confundindo com a mistura das roças e a ganância das safras. 

Dirigindo nas estradas da região, olho eu para as placas de sinalização que desfilam no meu para-brisa e somem depois de um fragmento de segundo no espelho, e me pergunto quem viveu lá, quem deu o nome e por quê.

E enquanto leio os nomes escritos em preto no metal pintado de branco, azul e verde, é todo um caleidoscópio de nomes que canta na minha memória e cujo sentido se perdeu, pelo menos para mim: Roc’h Ascoat, Bihit, Gravataí, Lapwent, Itapuã, Pors Termen, Xanxerê, Lan Kerellec, Iguatemi, Dour ar Barz, Zabitans, Jurubatuba?


¹A mulher de Napoleão, Joséphine de Beauharnais, era uma “créole”, ou seja, uma branca nascida nas colônias.  O reestabelecimento da escravidão que tanto ressentimento criou na Guadalupe e na Martinica deu-se em grande parte pela pressão exercida pelos békés, grandes fazendeiros que exploravam sobretudo plantações de açúcar e que precisavam de mão de obra para a cultura da cana. Depois, como se sabe, organizou-se a importação em massa de trabalhadores da Índia para o Caribe com o propósito de substituir os escravos negros.

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