A literatura à sombra dos livros didáticos
Sei que os amantes da literatura irão me entender: em vários momentos preciso fazer um esforço danado para aceitar que ela não está inserida no meu cotidiano mais prosaico. Na fila do mercadinho da esquina, por exemplo, após o cliente da minha frente tirar sarro do gringo do caixa sobre o resultado do último jogo do Grêmio, eu tenho vontade de, enquanto com destreza ele vai passando os itens pelo leitor do código de barras, perguntar-lhe se Dostoiévski só comia salsichão Borrússia ou se a pizza congelada tem Quincas borda de capituri. Ou quem sabe algo menos infame:
– Não tá rindo hoje, gringo, parece a Clarice Lispector. O que houve, começou a ler Adorno?
Pedindo ao leitor perdão pelas hipotéticas situações acima, existem dados que balizam a impossibilidade de que a literatura – e principalmente a assim chamada “alta literatura”, seja lá o que ela represente – faça parte do cotidiano dos brasileiros que não estão inseridos em contextos letrados normalmente ligados a cursos superiores da área das linguagens.
A média de leitura dos brasileiros, segundo pesquisa desenvolvida pelo instituto Pró-Livro, é de 2,43 exemplares por ano. Além disso, os dados apontam que 30% da população nunca sequer comprou um livro na vida. Não vou aqui discutir se isso é muito ou pouco, nem mesmo comparar com dados de outros países, sob pena de alimentar o nosso já tão famigerado Complexo de Vira-Lata.
Trago, para tanto, um diálogo, ocorrido entre mim e o dono do mercadinho:
– Funcionando hoje? – perguntei a ele no dia 15 de novembro, após ser surpreendido com o estabelecimento aberto e ali ter entrado para comprar qualquer coisa para comer.
– Sim, hoje também se ganha dinheiro. – respondeu.
– Mas tem que descansar, gringo.
– Mas também tem que ganhar dinheiro – disse ele, rindo e passando os itens no caixa.
– É verdade.
– E tu faz o quê?
[Continua...]