Ensaio

A maçã do Romero Britto e o valor por repercussão

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A maçã do Romero Britto e o valor por repercussão Foto: Antônio Manieri

Minha avó tinha um açucareiro de plástico laranja, em forma de maçã, do tipo que se encontrava – talvez ainda se encontre – em qualquer mercadinho ou loja de bugigangas. Esse açucareiro foi a primeira coisa que veio à minha cabeça quando assisti o vídeo da maçã do Romero Britto sendo destruída. A obra em questão era uma reprodução em cerâmica da Big apple, uma escultura bem maior (ia escrever ‘bem mais big’, mas não me atrevo), exposta no aeroporto John Kennedy, em Nova Iorque, e, garanto a vocês, muito parecida com o açucareiro da minha avó. 

A segunda coisa que me ocorreu foi: o açucareiro não teria quebrado tão facilmente. Claro que a durabilidade do açucareiro não desmerece a maçã do Britto, mas exalta uma determinada qualidade do açucareiro e me levou a refletir sobre construção, desconstrução, destruição e reconstrução de objetos artísticos. 

Não gostar das obras do Britto é uma espécie de distinção intelectual. O que, no Brasil, corresponde a uma distinção de classe. Os muito ricos brasileiros, uma meia dúzia de gente que vive em coberturas e mansões – algumas recentemente transformadas em prisões domiciliares –, não desgosta, até onde eu sei, da arte do maior artista pop de Pernambuco. É o que indicam respeitáveis publicações da imprensa rosa como Caras, Chiques & famosos e Quem Acontece. Um breve passeio por essas instrutivas páginas indica que a nossa elite que gosta de aparecer não é exatamente composta de gente de gosto ‘apurado’ ou versada em história da arte. Imagino que boa parte dos brasileiros afortunados deve apreciar mais o fato de ter dinheiro para comprar uma obra original, ou seja, o valor dela no mercado de bens simbólicos, do que o valor intrínseco de uma obra assinada por uma mão de Midas como a de Romero Britto. O que importa é que custa menos que um Picasso e ainda impressiona as visitas. 

Se minha avó quisesse destruir seu açucareiro, como fez a dona do restaurante vizinho à loja do Britto, também poderia, mas ia ficar sem ter onde por o açúcar. Não quero chegar àquela ultrapassada discussão sobre objeto de arte e utensílio, mas a uma outra, a do valor por repercussão. No rumo dessa conversa entra o episódio recente do leilão da Girl with baloon. Para quem já não lembra, em 5 de outubro de 2018 uma ‘cópia genuína’ do famoso estêncil de Banksy foi destruída depois de ser arrematada por 1.042.00 libras – uns 5.000.000 de reais – num leilão da igualmente famosa casa de leilões Sotheby’s, de Londres. Um triturador de papel marotamente instalado na moldura foi acionado assim que o leiloeiro bateu o martelo. O próprio Banksy assumiu a autoria do atentado em seu perfil no Instagram, onde detalhou o funcionamento do mecanismo e citou uma frase de Picasso, “O desejo de destruir também é um desejo criativo”, cuja autoria é de Bakunin. Se a falsa atribuição é proposital, só perguntando ao Banksy, que ninguém sabe exatamente quem é. 

De qualquer forma, mesmo fatiada, a cópia do estêncil é hoje mais cara que a Big apple original exposta no aeroporto. Gostaria muito de saber quanto valem, neste momento, os cacos da reprodução destruída pela dona do restaurante. Consta que o vídeo que animou a internet na semana passada é de 2017, o que deve tornar esses cacos, se ainda existem, ainda mais valiosos. O que estou chamando de valor por repercussão, que se aplica tanto aos cacos quanto às tiras do estêncil de Banksy, é aquele que uma obra adquire a partir de um ato que a deforma e, através disso, a coloca ou recoloca em circulação. Como aquela que resultou do delicioso vandalismo involuntário de Cecília Giménez. 

Em 2012, a desassombrada octogenária resolveu restaurar um pequeno afresco de Elías García Martínez intitulado Ecce Homo que enfeitava uma das paredes do Santuario de la Misericordia, uma igreja da província espanhola de Borja. A pintura original, “resultado de duas horas de devoção à Virgem da Misericórdia” de acordo com Martínez, era uma daquelas efígies genéricas que retratam a figura de um Cristo de pele branca, barba e cabelo castanho, cabeça inclinada pro lado e coroa de espinhos. Um exercício despretensioso do professor Martínez, que costumava passar as férias em Borja. Essas duas horas de devoção e desenfado datadas dos anos 1930 jamais entrariam para os anais da história da arte caso a versão restaurada não se tornasse um ícone incontornável, a peça de arte visual mais popular deste século. 

O Ecce Homo 2.0 de dona Cecília estilhaça a noção clássica de beleza e, nesse sentido, é uma linda peça de arte degenerada, no melhor estilo expressionista, que desafia, por tabela, não só as noções de autoria, mas as de reprodutibilidade e de arte comercial. Só existe um Ecce Homo restaurado, com sua aura particularíssima, valor de culto e de autenticidade, e faz parte da parede de uma igreja, o que significa que dificilmente pode sair de Borja. Com isso, ao invés de se tornar um enfeite peculiar na mansão de algum milionário, a restauração colocou Borja no mapa das artes. A cidadezinha passou a receber milhares de turistas interessados em ver de perto a cara de macaco do Cristo de Cecília, turistas que, na passada, deixam uns euros nas lojas que comercializavam vinhos, ursinhos, canecas e outros souvenires com o Ecce Homo estampado. Mau gosto? Pode ser, mas com certeza não se trata do mesmo mau gosto que muita gente atribui ao trabalho do Romero Britto. 

A celebridade que Madelyne, o terror das maçãs de porcelana, adquiriu ao quebrar a apple do Britto não resulta somente do ato destrutivo, mas do discurso que o acompanha. Segundo a empresária, o retratista das estrelas destratou os funcionários do restaurante dela durante um café da manhã em que reservou vinte lugares, tomou o café sozinho, pediu (pra tirar a) música, pagou oito dólares e ainda quis desconto. O motivo dignifica o ato, mas a simpatia com que ele foi recebido vai além do desagravo a uma suposta grosseria do artista. Muita gente se sentiu vingada por décadas de irritante convívio com frutas, estrelinhas, gatinhos e bonequinhos petipoá estilo Disney que enfeitam salas de espera, salões de festas, hotéis, palácios presidenciais e capas de caderno mundo afora.  Recalque, esnobismo, desprezo pelo gosto popular, de tudo isso e mais um pouco podem ser acusados os odiadores de Romero Britto que fizeram sua obra voltar a circular na semana passada, como uma fênix renascida dos cacos de uma maçã colorida. Uma fênix que nunca morreu, mas que já não andava voando tão alto. Britto acusa Madelyne de usar a fama dele pra ficar famosa, Madelyne acusa Britto de falta de humildade e educação. Os dois devem estar certos. E, cá pra nós, importa muito se não estiverem? Prefiro ficar com a bela história do sucesso acidental de dona Cecília e do Cristo de Borja ou com o dadaísmo crítico da guria do balão fatiada pelo Banksy. E com açucareiro da minha avó, sem qualquer valor por repercussão e resgatado do esquecimento em uma despensa qualquer da minha memória.


Fabio Bortolazzo Pinto é professor e revisor, mestre em literatura e doutor em comunicação. Também é aficionado por cinema, quadrinhos, música, garimpador de obscuridades e pai do António.

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