Ensaio

A moça que pousou nua e o torneio que se inicia hoje

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A moça que pousou nua e o torneio que se inicia hoje

Este ensaio faz parte de uma série. Acesse nos links o primeiro e o segundo textos.

Na língua que a gente fala, não há como diferenciar a moça que pousou nua da moça que posou nua porque falamos posou tanto pra posou quanto pra pousou. Só falamos esse ouousou, couro, estou – quando achamos que devemos caprichar na pronúncia. Eu tive uma aluna que caprichava na pronúncia: sempre falava não é? em vez de né?, como todo mundo fala. Me dava muita pena daquela trabalheira, e eu tinha ímpetos corrigir ela – É néé? que se diz, guria –, mas nunca fiz isso. Foi, portanto, por capricho que o redator do jornal aquele botou a moça a pousar nua; recebeu, em troca, o deboche público do chefe.

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Este ensaio faz parte de uma série. Acesse nos links o primeiro e o segundo textos.

Na língua que a gente fala, não há como diferenciar a moça que pousou nua da moça que posou nua porque falamos posou tanto pra posou quanto pra pousou. Só falamos esse ouousou, couro, estou – quando achamos que devemos caprichar na pronúncia. Eu tive uma aluna que caprichava na pronúncia: sempre falava não é? em vez de né?, como todo mundo fala. Me dava muita pena daquela trabalheira, e eu tinha ímpetos corrigir ela – É néé? que se diz, guria –, mas nunca fiz isso. Foi, portanto, por capricho que o redator do jornal aquele botou a moça a pousar nua; recebeu, em troca, o deboche público do chefe.

Fiquei conjeturando se eu – professor de escrita no curso de Jornalismo – me teria dado conta do erro se um aluno meu tivesse escrito isso. Meu olho de professor de Português se especializou em coisa mais relevante do que ortografia e confesso que, quando o Diretor de redação me mostrou a legenda, fiz cara de inteligente, mas só me dei conta do pou, do ditongo, quando ele falou em decolar pelada. Se eu tivesse percebido isso no texto de algum aluno meu, eu teria, provavelmente, tomado como um trocadilho, e é bem possível que tivesse escrito um comentário semelhante ao do Diretor de redação. O aluno teria sido o primeiro a rir, e resto da turma só ia rir – com ele e não dele – se ele comentasse sobre isso em aula.

Quando me escalaram, em 1974, pra dar aula de Redação Jornalística no Curso de Jornalismo, perguntei por que eu, que não sou jornalista. Me disseram que, desde a fundação do Curso de Jornalismo, em 1952, essa disciplina era dada por um professor de Português. Tudo bem – pensei eu –, em 1952 professor de Português só dava aula de gramática, e pra escrever em jornal bastava não cometer muito erro de Português, mas, em 1974, os jornalistas brasileiros já tinham sido instruídos a edificar as pirâmides invertidas do jornalismo americano. Eu, que, quando estudante, lá nos anos sessenta, muito escrevi em jornais do Centro Acadêmico da antiga Faculdade de Filosofia da URGS, sempre me fazia de surdo quando os editores, que eram sempre alunos do curso de Jornalismo, tentavam me fazer organizar o texto seguindo a planta da tal pirâmide. Como eu estudava pra professor de Português, eles me deixavam escrever como eu queria, até porque – achava eu – eles gostavam do que eu escrevia.

Eu topei dar aula de Redação Jornalística, mas eu não ia nem me agarrar numa gramática, nem me guiar por algum manual de jornalismo, até porque o jornal que eu lia era O Pasquim e tinha certeza de que eles também. O Pasquim não fazia nem o gramatiquento jornalismo brasileiro nem o objetivento jornalismo americano, mas eu também não ia levar O Pasquim pra aula e dizer que era assim que eles tinham de escrever. O que eu fiz foi botar eles a escrever sobre algum assunto que me vinha na cabeça ou sobre o que a gente discutia em aula e a comentar por escrito nos cantos e no verso do papel em que eles escreviam. Comentários de leitor: conta melhor essa história, que não dá pra entender isso e aquilo, queque tu quer dizer com essa palavra / essa expressão? Isso não seria caso de portanto e não de todavia? Pedia mais: conta direito, explica melhor.

Menos, eu nunca pedia. Eles perguntavam: Quantas linhas tu quer? Eu respondia: A quantidade necessária pra contar tudo e explicar direito. Depois eu troquei de resposta: Tantas quantas forem necessárias pra escrever um texto interessante, inteligente e original. O que me parecia problema gramatical eu assinalava. Só assinalava: que me perguntassem qual era o problema, que eu explicava, na aula ou fora dela, e sempre tinha os que perguntavam na aula, querendo discutir a questão, e a gente discutia. Tinha também os que queriam que eu desse aula de gramática, e eu, também lá pelas tantas, atinei com a resposta: Já ensinaram pra vocês que chegue: tratem, agora, de aprender. E, nunca, nenhum deles sequer mencionou o manual de redação de jornal algum. Eu sabia vagamente que eles tinham aulas de prática de redação de rádio e/ou de televisão, mas nunca ninguém sequer insinuou que eu bem que podia dar aulas de redação de jornal, até porque, também pra eles, isso seria coisa de jornalista e não de professor de Português.  

Dez anos depois, me convidaram pra fazer parte da Comissão de Graduação pra ajudar na montagem de novos currículos para os cursos de Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas, e a primeira coisa que eu disse foi que Redação Jornalística tinha de ser dada por jornalistas, assim como Redação de Publicidade era coisa de publicitário, que o programa que eu vinha inventando ao longo daqueles anos eu queria trabalhar no início dos cursos. Foi o que fizemos: três disciplinas – Comunicação em língua portuguesa I, II e III – nos três primeiros semestres para os alunos dos três cursos. Aí, eu virei mesmo um professor de Português que não dava aula de gramática; eu mandava escrever em casa e ler em aula em voz alta pra todo mundo ouvir e comentar. Depois lia em casa escrevendo comentários sobre os textos e sobre os comentários feitos em aula a respeito deles.

E foi esse professor, com essa experiência, que, alguns anos depois, o jornal aquele chamou pra dar uma revisão de Português, porque lá trabalhava gente que, entre muitas outras coisas, não sabia – como eu também não sabia – que alguma coisa sempre inicia-se. E, entre outras coisas, esse cara disse em aula pros editorialistas, editores, redatores, repórteres e revisores daquele jornal que, segundo pesquisa do Centro de Estudos Lexicológicos da UNESP de Araraquara, iniciar nem sempre está acompanhado de se na prosa escrita contemporânea do Brasil. E o meu curso foi descontinuado. Depois fiquei sabendo que eles fizeram um manual de redação próprio, que, certamente, não se orientou pelas pesquisas feitas pelas universidades brasileiras a respeito da língua em que se vem escrevendo no Brasil e que, consequentemente, editorialistas, editores, redatores, repórteres, etc. também não conseguem obedecer. Ou seja, se algum outro Diretor de redação, imbuído do mesmo zelo gramatical-manualista se dedicar e escandir frase por frase um dos exemplares contemporâneos do jornal que eles publicam, é bem possível que chegue a mais de cem “erros”, isto é, construções próprias da língua que todos nós andamos, há muito tempo, botando por escrito nesta terra. 

O que eu tô querendo dizer é que não há mais autoridade – nem de professor de Português nem de Diretor de redação – que dê conta disso. Nós, que escrevemos nesta terra, escrevemos o que lemos escrito nesta terra, que é o português brasileiro – a língua que nós falamos – tal como ela vem sendo posta por escrito no Brasil, há bem mais do que cem anos. Vocês conseguem imaginar alguém escrevendo como não fala e como não lê?  Aqueles dois caras estão compondo aquela canção que diz que estou sentado à beira desta estrada triste onde a tristeza e a saudade de você ainda existe, e, aí, então, um deles diz pro: O certo é existem, né?, mas vammbotá existe por causa da rima com triste. Dá pra acreditar nisso? Dá pra acreditar que todos os treze entre cantores e cantoras e duplas e bandas que eu fui conferir lá no Vagalume também cantaram existe porque igualmente chegaram a tal acordo? Dá pra acreditar que todos vocês que algum dia cantaram essa canção também tinham consciência desse erro de concordância


Paulo Coimbra Guedes é professor do Instituto de Letras da UFRGS, onde leciona redação há muito tempo, atuando nas licenciaturas de Português no curso de Jornalismo. É autor, entre outros, de Da Redação Escolar Ao Texto – Um Manual De Redação (Editora: UFRGS). Foi homenageado no livro O que eu quero dizer é o seguinte (Editora da UFRGS).

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