Algumas palavras sobre o Rock Gaúcho dos anos 80
Fotos: Eurico Salis
Existem muitas formas de contar uma mesma história. Biografias, entrevistas, narrativas cronológicas, relatos, arqueologia de mídia, resenhas e muito mais. Ainda que todos estes métodos tenham se mostrado bastante eficientes, há quem insista em reinventar a roda. Muitos, nesse intento, fazem da roda um quadrado que, por pura petulância, arrastam por onde vão. Mas não é que às vezes essa petulância traz resultados interessantes?
A chegada de certas tecnologias tornou possível contar histórias através do estudo e da análise de dados. Essa nova forma não é melhor, ouso dizer que é até pior do que qualquer outro método. No entanto, como toda novidade, ela abre novas portas, novas possibilidades, novos modos de enxergar temas já exaustivamente narrados. Como seria então contar a história do rock no Rio Grande do Sul através de dados como a frequência de palavras nas canções? Foi essa pergunta que o pesquisador Henrique Cardoni, este que vos escreve, fez. E é sobre alguns dos seus resultados que falaremos aqui.
Se uma máquina com inteligência artificial escrevesse um Rock Gaúcho dos anos 80, o que espero que nunca venha a acontecer, provavelmente a letra começasse com “Baby, nessa noite eu quero teu amor”. Razão é o fato de que “eu”, “quero”, “amor”, “nada”, “mundo” e “baby” são algumas das palavras mais utilizadas ao longo de quase 300 canções do gênero. Mais especificamente, são as palavras mais mencionadas do Rock Gaúcho dos anos 80 pelas bandas Os Cascavelletes, Defalla, Engenheiros do Hawaii, Garotos da Rua, Joe Euthanázia, Julio Reny, Nenhum de Nós, Os Eles, Os Replicantes, Bandaliera, Taranatiriça e TNT:
A enorme frequência de termos como “eu” e “amor” não é uma exclusividade dessas bandas. Pelo contrário, o “eu” e o “amor” são o cerne da lírica do rock, e não apenas o daqui. Um exemplo é o fato de que Os Beatles tem o termo “love” como o mais mencionado de sua discografia — provável influência da banda gaúcha Os Brasas, tese que ainda hei de comprovar.
Mas se “eu” e “amor” são termos recorrentes na maioria dos rocks, os demais termos não são, a começar pelo “quero”. A título de comparação, ao juntar as letras de artistas gaúchos dos anos sessenta e setenta: Almôndegas, Carlinhos Hartlieb, Hermes Aquino, Fernando Ribeiro, Liverpool, Bixo da Seda, etc., o “quero” aparece apenas dezessete vezes. Se pularmos uma década, perceberemos que a gurizada dos oitenta usa o termo em mais de duzentas oportunidades. Mas o que é que essa gurizada tanto queria?
É realmente impressionante a incidência do termo “quero”. Não apenas ele ocupa a segunda posição, atrás apenas de “eu”, como também aparece quase uma centena de vezes a mais que a palavra “amor”, a terceira colocada. A que poderia se atribuir essa frequência? Pois tenho uma hipótese: a redemocratização. É preciso ter em mente que as bandas do chamado Rock Gaúcho dos anos 80 são as primeiras a compor em um Brasil pós Ditadura Militar. Assim, é de se pensar que a redemocratização cumpre um importante papel nessa frequência; trata-se de uma geração que pode, finalmente, dizer o que quer.
Em muitos casos o “quero” se relaciona com uma figura feminina, em especial nas bandas Garotos da Rua, TNT, Taranatiriça e Cascavelletes.
“Tereza”, do Taranatiriça (1985)
Quero que você seja a minha televisão
Eu fico te olhando, eu fico imaginando
Eu posso até perder a razão
“A irmã do Dr. Robert”, TNT (1987)
Tudo que eu quero é passear com ela
“A última virgem”, Cascavelletes (1987)
Eu quero agarrar
A última virgem
“Babilina”, Garotos da Rua (1986)
Babilina, Babilina, sai desse bordel
Eu quero a exclusividade do seu amor
“Mulher enrustida”, Os Replicantes (1986)
Eu já cansei de ficar só te secando
Eu quero mais é que você vá chupando
Eu tô de saco cheio de mulher enrustida
Eu quero ser levado e servir de comida
“Estupro com carinho”, Cascavelletes (1987)
Eu quero te estuprar
Com muito carinho
Impossível não fazer aqui uma pausa para pensar em “Estupro com carinho”. Claro que a crítica à arte está sempre sujeita a anacronismos, mas é difícil crer que, mesmo à época, “Estupro com carinho” não soasse forte, para alguns ofensivo. Penso que essa canção merece todas as críticas que recebe até os dias de hoje, porém é interessante pensar nela em um contexto de liberação da censura. Parece-me haver certo desejo de esticar os limites da recém-alcançada liberdade de expressão. A canção foi lançada apenas dois anos depois do fim da Ditadura Militar, de forma que há nela a busca por tensionar essa nova liberdade e levá-la às últimas consequências: “Eu quero te estuprar (…) Louca é tua boca/ Louca é tua bundinha/ Gostosinha”. De certa forma, essa tensão, que está perto do tesão não apenas na grafia, comunica-se com a incidência enorme do termo “quero” nas canções daquela década do Rock Gaúcho. Não por isso as canções daquele tempo estão isentas de merecidas críticas, inclusive a análise das palavras mais mencionadas explicita que o gênero tem sexo, cor, orientação sexual e classe: é fundamentalmente masculino, branco, heterossexual e de classe média urbana.
Para além do desejo em relação ao feminino, o “quero” também aparece de outras formas, em especial em Os Replicantes e Engenheiros do Hawaii. Estes trarão o termo representando outros anseios.
Em “Censor”, Os Replicantes (1986):
Vocês querem me fazer acreditar
Que eu tenho liberdade pra criar
Mas esses anos todos me deixaram meio cético
E eu fui aprendendo a ser meio eclético
De modo que agora eu quero ver
A verdadeira cara do poder
Na bandeja com couve-flor
Eu quero a cabeça do censor
“Eu quero a cabeça do censor” manifesta um outro desejo, impossível de ser manifestado na década anterior. Interessante pensar nessas estrofes iniciais, pois elas declaram explicitamente um ceticismo frente à liberdade recém-chegada, como se ela não fosse de fato livre. Esse “ser eclético” parece mencionar a necessidade de se esquivar da censura através de técnicas como a metáfora. A nova realidade já não pede essa esquiva, chegou a hora em que é possível dizer “eu quero”, “eu quero a cabeça do censor”. Talvez o desconforto frente a essa nova liberdade se refira também ao fato de que “a cabeça do censor” não veio. Anistia de mão dupla?
A canção é importante, pois lança uma visão dúbia sobre a ideia de liberdade. Essa liberdade, ou suposta liberdade, é questionada em muitas canções daquela época, de forma que não cabe uma lente meramente positiva frente ao tema.
Para os Engenheiros do Hawaii, em “Infinita Highway” (1987):
Tudo bem, garota, não adianta mesmo ser livre
Se tanta gente vive sem ter como viver
Eis a ambivalência da liberdade na periferia do capitalismo. Uma geração que declara uma liberdade, mas que não a comemora, que a menciona em rocks e em transes vinculados à sexualidade, mas a olha de soslaio, com grande ceticismo. Uma geração que entra na democracia, por incrível que pareça, com um sentimento de “o jogo está perdido”. É isso que está posto na quarta palavra mais utilizada no Rock Gaúcho dos anos 80: “nada”, 152 menções.
“Que Piada”, dos Garotos da Rua (1986) traz o “quero” e o “nada” próximos:
Eu não quero nada, ninguém sabe nada.
Graças aos Deuses.
Me deixa respirar, nego tudo
ninguém pode provar.
Quem pode tudo é o meu coração
Nesse trecho parece haver relação novamente entre a ideia do “amor”, marcada na estrofe pelo verso final “quem pode tudo é o meu coração”, e a posição que tal sentimento ocupava no imaginário da geração anterior, o de representar um bastião do humano frente ao “progresso” e à “cidade”. No caso dos 80, o “nada” vai se referir a um mal-estar de certa forma semelhante ao da década anterior, mas com um inimigo muito mais difuso. A cidade é uma realidade estabelecida, ela não vai aparecer para antagonizar, o progresso está posto, não há passado “Para Poder Voltar”, canção de 1975 do Grupo Pentagrama. Assim, o mal-estar segue, porém, agora, representado em uma espécie de niilismo. Para Nenhum de Nós, em “Afastado” (1989):
Homens e mulheres comuns
fazendo as tarefas comuns
vivendo suas vidas comuns
como condenados a ser igual
a nada
“Cachorro Louco”, TNT (1987)
Nada que ele faz tem sentido
Ele é um cara loucão
Era um garotinho sensível
Cheio de amor pra dar
Mas a sociedade falida
Fez sua cabeça mudar
“Escravos Modernos”, do Garotos da Rua (1986)
Aqui nunca teve guerra
Aqui ninguém tem pressa
Tudo pode ser quando Deus quiser
Aqui não tem nada de novo
Tudo acontece de novo
As coisas podem mudar, mas sem sair do lugar
Em “Às Vezes se Perguntam”, de Os Eles (1986)
Parece que com o tempo está se andando para frente
Mas se olhar pra trás não há nada diferente
Qualquer que seja o rei
Que ocupe o trono
A história se repete
Viva o novo dono
Mesmo em casos como “Cachorro Louco”, TNT (1987), onde há uma espécie de humor e elogio frente ao personagem niilista e revoltado, fica possível a interpretação de que a geração dos 80 vê o seu contexto, a redemocratização, como algo que não trouxe grandes mudanças estruturais. Ainda que Porto Alegre tenha somado nas manifestações das Diretas Já (1984) cerca de 200 mil pessoas, de acordo com os organizadores, e 60 mil de acordo com Brigada Militar, o sentimento de atuação, e de que as coisas estão mudando para melhor, não é parte do imaginário de boa parte das composições.
Para os Engenheiros do Hawaii (1987), em “Além dos Outdoors”
No dia a dia da nossa aldeia
Há infelizes enfartados de informação
As coisas mudam de nome
Mas continuam sendo o que sempre serão
Talvez a canção mais emblemática nesse sentido seja “Fé Nenhuma” (1986), dos Engenheiros do Hawaii, que me soa quase uma resposta a certo idealismo da geração anterior, o que deveria existir também nos anos oitenta em Porto Alegre, mas não marca presença no Rock Gaúcho, estilo que nega o idealismo.
Não levo fé nenhuma em nada
Mas ninguém tem o direito
De me achar reacionário
Não acredito no teu jeito
Revolucionário
A canção “Fé Nenhuma” (1986) reitera sua descrença ao abdicar da ética revolucionária “Não acredito em teu jeito/ Revolucionário”, e de qualquer outra ética. O que sobra é o “nada”, visto que o narrador não encontra lugar nem mesmo no Movimento Estudantil, e tão pouco acredita no “futuro do Brasil”. “Fé Nenhuma” parece ser um retrato dessa geração que, se por um lado ganhou toda a liberdade que faltava na década anterior, perdeu o bem imaterial da esperança.
Qual a razão de tanto niilismo? O que fundamentalmente se perdeu? Talvez a possibilidade abstrata de um ideal. Talvez a vitória do progresso acachapante temido nos anos setenta, o desmantelamento da URSS e a gradual vinda à tona dos crimes contra a humanidade perpetrados naquele país, talvez isso tenha sacramentado nesta geração a ideia de que não há mais para onde correr. Daí o “nada”, a fé em nada, essa perda objetal enigmática dá origem não ao luto, mas à melancolia. No entanto, essa mesma geração busca uma superação, ou sublimação, do niilismo em certa positividade diante das possibilidades da cidade, dos encontros, do sexo, das drogas e, porque não, do rock and roll.
Se não há mais para onde correr, corramos uns para os outros. Eis o “amor”, terceira palavra mais mencionada. O Rock Gaúcho dos 80 irá trazer um amor que ora quer dizer apenas sexo, mas não sempre, pois quer dizer também gente, quer dizer cidade, noite, quer dizer o possível de humanidade dentro da disforia:
Você é tão sexy mas eu não quero fazer amor
Eu quero apenas conversar
E na fumaça dos cigarros me conte toda sua vida
Mostre toda a ferida, todo tipo de esperança
Cantam os Cascavelletes (1990), em “A Luz da Noite”. Mas também Julio Reny (1989) declara, em “Amor e Morte”:
Você diz que o amor
Só pode rolar a toda velocidade
E que uma gata tem que andar muito ligada
Por esse pique de cidade
Ou em Cascavelletes (1990), “Frustrações”:
Saída não existe e dizem na tevê
Eu gozo o apocalipse, junto com você
“Gozar o apocalipse” mostra o modo como aparece o termo “amor” em algumas composições, não apenas ele, mas boa parte do hedonismo expresso em algumas líricas. Assim, as canções não trazem um gozo que tira o desagradável do seu campo de visão, pelo contrário, o traz para perto, diz “apesar de”, e convida para um cigarro. Em alguns casos ri, faz troça.
Resgatar os prazeres da cidade, da “fauna ensandecida do ocidente” (Nei Lisboa, 1987). Uma geração que canta não ter mais fé, mas reitera: “A gente arrasa a cidade” (Garotos da Rua, 1986) e “É à noite que eu saio/ pra conhecer a cidade/ e me perder por aí” (Engenheiros do Hawaii, 1986). Como jovens flâneurs, a geração de roqueiros dos 80 habita a modernidade, procura a potência dos encontros, da cidade e entende a beleza de diluir-se nos acasos da multidão.
Existem muitas formas de contar uma mesma história. A frequência de palavras é uma que permite encontrar padrões dentro das obras, desses padrões surgem hipóteses, das hipóteses, a possibilidade de entender como determinada geração cantava seu mundo. Assim, apesar de justificadas críticas aos roqueiros dos anos 80 no estado, não deixa de ser belo e significativo o fato de que a somatória de sua produção acabe por desaguar em uma singela frase: “eu”, “quero”, “amor”.
Henrique Santos Cardoni é graduado em Comunicação Social pela PUCRS e atualmente cursa Doutorado em Literatura, Sociedade e História da Literatura pela UFRGS. É também compositor e músico na banda Baby Budas, que acaba de lançar seu segundo disco, Feliz Ano Ruim (2021), disponível em todas as plataformas de streaming musical