Ensaio

Branquitude

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Branquitude

No sesquicentenário da Independência do Brasil eu cursava o que, à época, era denominado de Ginásio. Lembro do colégio todo decorado em verde e amarelo e de um esforço das freiras para organizar eventos e atos que culminassem em uma grande festa na Semana da Pátria. Nas aulas de música aprendíamos, e repetíamos sem cessar, o Hino Nacional e o Hino da Independência. Cada turma ficou responsável pela preparação de algo especial. À minha coube encenar o Grito do Ipiranga. Naquele longínquo setembro, teatro do colégio cheio, estávamos prontas para o palco. A maioria de nós era coadjuvante, representávamos os índios; uma era o príncipe regente, outra o mensageiro, cerca de dez personificavam os acompanhantes do príncipe. Apelidamo-nos de índios “cara-pálidas”, no meu caso, ainda por cima, ruiva e sardenta. No momento de maior emoção, minha colega-príncipe desembainhou a espada e gritou “Indecência ou Morte”. Índios, mensageiro, acompanhantes e grande parte da plateia riu, as freiras não. Por um bom tempo ouvimos sermões pelo erro que elas julgaram intencional. Foi só o que viram de errado na nossa encenação, nenhuma palavra sobre a presença dos índios, a ausência dos negros. Tínhamos internalizado a história oficial branca sem nenhuma crítica ou questionamento. 

Um ano depois, debutei. Não tanto por vontade própria, mas por pressão da minha mãe. Meu protesto limitou-se à negativa de usar um vestido branco com babados, optei por um rosa com bordados. Minha rebeldia não representava maiores riscos. Na noite do baile éramos cinquenta e três meninas em vestidos brancos, rosas, azuis celestes, deslizando pelo salão conduzidas por nossos pais, e uma menina do Clube Floresta Aurora. Não que eu lembre dela, mas a foto está na última página do álbum que ganhamos com nossas fotos, filiação, e a observação de que ela era convidada.

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No sesquicentenário da Independência do Brasil eu cursava o que, à época, era denominado de Ginásio. Lembro do colégio todo decorado em verde e amarelo e de um esforço das freiras para organizar eventos e atos que culminassem em uma grande festa na Semana da Pátria. Nas aulas de música aprendíamos, e repetíamos sem cessar, o Hino Nacional e o Hino da Independência. Cada turma ficou responsável pela preparação de algo especial. À minha coube encenar o Grito do Ipiranga. Naquele longínquo setembro, teatro do colégio cheio, estávamos prontas para o palco. A maioria de nós era coadjuvante, representávamos os índios; uma era o príncipe regente, outra o mensageiro, cerca de dez personificavam os acompanhantes do príncipe. Apelidamo-nos de índios “caras-pálidas”, no meu caso, ainda por cima, ruiva e sardenta. No momento de maior emoção, minha colega-príncipe desembainhou a espada e gritou “Indecência ou Morte”. Índios, mensageiro, acompanhantes e grande parte da plateia riu, as freiras não. Por um bom tempo ouvimos sermões pelo erro que elas julgaram intencional. Foi só o que viram de errado na nossa encenação, nenhuma palavra sobre a presença dos índios, a ausência dos negros. Tínhamos internalizado a história oficial branca sem nenhuma crítica ou questionamento. 

Um ano depois, debutei. Não tanto por vontade própria, mas por pressão da minha mãe. Meu protesto limitou-se à negativa de usar um vestido branco com babados, optei por um rosa com bordados. Minha rebeldia não representava maiores riscos. Na noite do baile éramos cinquenta e três meninas em vestidos brancos, rosas, azuis celestes, deslizando pelo salão conduzidas por nossos pais, e uma menina do Clube Floresta Aurora. Não que eu lembre dela, mas a foto está na última página do álbum que ganhamos com nossas fotos, filiação, e a observação de que ela era convidada.

Vivi minha adolescência nos meados da década de 1970. No colégio aprendia sobre a Guerra Fria, em casa ouvia sobre a ditadura militar, com ordens expressas de não repetir nada do que conversávamos em outros lugares. O risco era baixo. Na rua preferia as reuniões dançantes, as festas de quinze anos, o cinema com amigos, os encontros com amigas para escutar música, curtir “fossa” por algum menino que não nos dava a mínima, ouvir sobre o primeiro beijo das outras. As festas em clubes vieram na sequência, levada e buscada pelos meus pais. Em uma delas, no Lindóia Tênis Clube, não entramos. Solidariedade ao nosso amigo que foi barrado. O clube não permitia negros. Um de nós pôde entrar para telefonar e pedir aos nossos pais que fossem nos buscar. Enquanto esperávamos na frente do clube, éramos observados pelos seguranças. Pela primeira vez ouvimos que negro não entrava em todos os lugares. Ficamos indignados por terem barrado Sérgio. Nós o chamávamos de Maguila.

Minha mãe por essa época disse estar preocupada com o meu primeiro namorado. Achava que ele tinha gengiva de negro e uns cabelos nas têmporas que cresciam meio carapinhas. Não terminei o namoro por isso. Fiquei furiosa com ela por estar procurando defeitos nele.

Em casa, aprendia sobre a importância de tratar a todos como iguais, embora a empregada não tivesse permissão para sentar-se à mesa nas refeições. Na casa da minha avó paterna, em Pelotas, vivia Iracema, há tanto tempo na família que conheceu meu pai quando ele nasceu. Depois da morte do meu avô, ela se tornou a acompanhante permanente da minha avó. Na ampla sala com sofás e poltronas havia um mochinho ao canto para Iracema. Era descrita como da família. Não aparece em nenhuma foto do álbum familiar. Quando criança eu a temia, era negra como o bicho-papão.

Adolescer nos anos setenta trazia a promessa de um país do futuro. O colégio de freiras em que eu estudava equilibrava-se entre aulas de química, física, matemática, inglês, português, literatura, história, geografia, sociologia, filosofia, educação moral e cívica e de artes manuais, culinária, etiqueta social, tricô, croché e bordado. Pensávamos em medicina, engenharia, arquitetura, psicologia, veterinária, análise de sistemas, administração ou qualquer outro curso superior; as freiras enalteciam os requintes de uma mesa bem posta, um cardápio elaborado e, acima de tudo, a importância de saber não para fazer, mas para dirigir, mandar os empregados fazerem. Junto a tudo isso, as aulas de ensino religioso nos orientavam para a caridade e benevolência.

Fiz uma escolha profissional conciliatória. Prestei vestibular para Serviço Social.

Na faculdade tive meus dois primeiros colegas negros. Mais velhos do que eu, já casados e com filhos. Por quatro anos dividimos disciplinas, experiências na prática supervisionada, alguns trabalhos em grupo. Na formatura foram os mais aplaudidos, reconhecimento à superação da cor da pele na obtenção de um diploma universitário. Ainda hoje os aplausos mais enfáticos acontecem quando o formando é negro.

No início da minha vida profissional passei a ter um contato diário e intenso com negros. Eram eles que internavam em maior número por desnutrição grave, broncopneumonia, verminose, Mal de Kwashiorkor (desnutrição proteica). Muitos morriam, outros tantos eram abandonados no hospital e a maioria retornava para nova hospitalização poucos dias após a alta. Nessa época eu já desacreditara em um país do futuro e começava a compreender os mecanismos da desigualdade social, estritamente do ponto de vista de uma opção pelo sistema capitalista, ignorando as especificidades relativas ao que eu tinha aprendido como raças. Acreditava que a cor da pele não importava, acima de tudo deveria estar a justiça social.

Em meados da década de 1980, prestei concurso público para o cargo de Assistente Social no poder legislativo estadual. Comecei a desempenhar as funções na creche para os filhos de servidores da Assembleia Legislativa. As turmas tinham crianças brancas e algumas negras; na cozinha, lavanderia e serviço de limpeza da creche a maioria dos funcionários era negra, enquanto entre professores, atendentes e estagiários poucos não eram brancos. Espantava-me aquilo que eu entendia como agressividade quando nas reuniões diversos procedimentos eram apontados como racistas. Passei a acreditar em uma raiva sem sentido, causada por problemas de ordem pessoal. 

À medida que a violência urbana aumentava, eu trocava de calçada se via um grupo de meninos negros. Nas três vezes em que fui assaltada, eles eram brancos. Continuei evitando os mesmos grupos, apesar da experiência não confirmar meu temor.

Trago em mim a gênese da branquitude. Cresci em relacionamentos verticais com os negros, onde eu ocupava a posição de superioridade. Eram empregados na minha casa, na casa dos meus familiares, zeladores e faxineiros dos prédios em que morei. Faziam trabalhos braçais, não tinham voz nem querer. Serviam a nós que, além de dar um salário-mínimo, buscávamos tratá-los como gente. No descontentamento, viravam “essa gente”. Um grupo diferente de nós, apesar da nossa compaixão e benevolência. 

Das mulheres negras, invejava a sensualidade, o gingado, a habilidade em mexer as cadeiras, tudo aquilo que faz delas um fetiche e uma unidade indistinta em que a cor da pele define um bloco sem rosto, nome, vontades, desejos, histórias, dores.

Contamos e recontamos a história do país apagando a presença negra. Ignoramos a dívida social e histórica pela escravidão. Aplaudimos formandos negros sem a vergonha de manter uma estrutura social que nega a eles o mesmo direito de que julgamos ser merecedores. O que para nós é sonho ou meta, entregamos a eles como desafio. Cada um que vença por si mesmo. Garantimos ovacionar a conquista, enquanto ela não nos ameaçar.

Festejamos com orgulho uma data marcada pelo Massacre de Porongos. Continuamos a desarmar os negros, negando o acesso à educação de qualidade e empurrando-os para longe dos nossos olhos. Que minguem e morram próximo aos esgotos a céu aberto.

Tudo isso mantendo o orgulho de não ser racista. Nada mais racista do que se afirmar não-racista. Parte da concepção que há raças e não apenas pessoas com diferenças genéticas que influenciam nas diversas características físicas. Raça é marca de diferença, não de diversidade. Separa os brancos de todos os outros, ao mesmo tempo que a linguagem enaltece a brancura como qualidade, pureza, leveza, paz e o preto como treva, maldade, tristeza, sujeira.

A dor que sinto ao me perceber estruturalmente branca não se compara à dor de um negro em uma sociedade que nega o sofrimento infligido e continua matando e perseguindo pela cor da pele.

Não fale de racismo reverso. Lembre-se de quantas vezes você precisou se apoiar em um grupo para lutar contra o poder, representado por seus pais, empregadores ou governantes. Nós, brancos, somos o poder que espolia, há séculos, os negros neste país. Trazidos como carga e mercadoria, continuamos barrando e excluindo-os dos espaços de cidadãos.

Somos tão competentes em calar e apagar as vozes negras que precisei de décadas para poder começar a ver que minha crença no meu não-racismo trazia a construção histórica de superioridade. Negava ao outro a afirmação de sua revolta e de sua dor, transformando-as em conflitos de origem pessoal e não social.

Não sei o quanto de mim ainda se mantém não-racista. Quero eliminar em mim essa crença, assumir o racismo que há nela e poder me construir antirracista. Para isso, não poupem críticas quando a minha branquitude se fizer presente. Ela me envergonha.


 Maria Avelina Fuhro Gastal é formada em Serviço Social pela PUCRS, com especialização em Terapia de Família e Casal. A partir da aposentadoria no serviço público estadual, em 2012, tem se dedicado à escrita. É autora de Nós e do recém-lançado Ecos e sussurros, ambos pela Editora Metamorfose.

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