Ensaio

Breve relato autobiográfico

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Breve relato autobiográfico

Duas semanas atrás, no dia em que a discografia completa do Nelson Coelho de Castro ganhou o mundo digital, o Arthur de Faria publicou um artigo aqui na Parêntese que dizia assim: “Foi lá por 1983 que a gente começou a ter um exacerbado orgulho de viver no mesmo tempo e espaço do Nelson. “Todo mundo” pensava isso”.

Eu, Patrick Tedesco, nasci em 1987 e sou de outra geração. Lá por 2004 comecei a desenvolver um interesse um pouco obsessivo de querer conhecer mais sobre música e artes em geral. Na época, pelos meus 17, eu estava finalizando os longos e chatos tempos de estudos estéreis voltados à lógica “é preciso passar no vestibular” e começava a querer me sentir livre. Era tempo de Fórum Social Mundial em POA e de assunção de Lula, de conquistar ser gay e poder andar de mãos dadas na rua e de sonhar em como o mundo seria 10 anos depois. Foi nesse momento em que conheci Nelson. Entre CDs dos Beatles, Queen, Gal Costa, Oswaldo Montenegro, Los Hermanos e Fito Páez, não podia faltar ouvir diariamente os meus preferidos: Milton Nascimento e Nelson Coelho de Castro.

Para além de uma certa formação de identidade tão necessária aos fins de adolescências (assim como o Arthur, eu também pensava “que presentão ter Nelson tão perto de nós”, e tinha um certo orgulho de poder dizer para meus amigos, “Eu conheço a música de Nelson Coelho de Castro, você já ouviu?”), Nelson me remetia a uma memória antiga e afetiva sobre Porto Alegre herdada de meu pai. Ele tem mais ou menos a mesma idade de Nelson, e no início da década de 70, com apenas 15 anos, tinha se mudado do interior de Santa Catarina para se aventurar na cidade grande. No braço com a vida, as histórias que meu pai contava sobre esse tempo sempre fizeram parte de meu imaginário: dizia ele que sempre ia para a beira do Gasômetro para pular barris e flutuar no rio Guaíba, que aos domingos ia assistir lutadores de boxe pugilistas não sei em qual morro, que viu Elis cantando numa praça e que quase morreu atropelado por um caminhão certa vez em que tropeçou em sua calça boca de sino no meio de uma highway (assim como o Nelson, meu pai também usava cabelos compridos). Não sei se era tudo verdade, mas as letras de Nelson me faziam lembrar das aventuras desse guri solto pela cidade que foi meu pai em plenos 70, em um misto de tempos de chumbo com potência juvenil, que driblava muito na rua que tem os neguinho que desaparecem.

Assim, mesmo sem saber, com o poder que a música tem de fazer parte da história da vida das pessoas, Nelson Coelho de Castro foi para mim um pouco como uma figura paterna, um pai que sabe orientar e apontar caminhos, um pai que dizia: “Eu não posso me esquecer de nada do que está acontecendo agora, neste momento, nesta cidade, neste estado, neste país, neste planeta. Do que estamos fazendo e o que estamos fazendo para a narrativa da história. Eu quero ver se consigo trazer isto tudo sempre acordado dentro de mim” (“Legislativo”, do álbum Nelson Coelho de Castro, 1983).


Restauração das capas

Era início da pandemia quando Luciano Mello (músico, compositor e produtor do selo Bing Machine) começou a trocar áudios com o Nelson para acertar o lançamento de toda a discografia nas plataformas digitais. O Nelson queria que fosse lançado “tudo junto e de uma só vez”.

O convite para digitalizar e restaurar as capas chegou até mim e eu logo pensei: temos algo importante para fazer aqui! Como não tínhamos nem as matrizes de impressão do material gráfico dos vinis e nem os arquivos originais das capas dos CDs, era necessário digitalizar e depois realizar a restauração das capas para o lançamento em formato digital. Esse procedimento durou algumas semanas.

Primeiro, busquei no acervo do Luciano os materiais que deveriam ser digitalizados: eram sete capas, sendo três vinis, três CDs e um single. No ano passado estávamos dividindo um apê em Portugal, mas o Luciano tinha feito questão de levar na mudança todos os álbuns mais queridos e que não estavam disponíveis para a audição nas plataformas digitais: mais por afeição do que por sorte, tínhamos todo o material que precisávamos para prosseguir o trabalho.

Depois dessa etapa comecei a fotografar o material. Foi necessário um cuidado profissional na escolha de lentes, controle da iluminação e sombras – foi um pouco como o trabalho que fotógrafos de produtos desempenham ao fotografar objetos com a melhor qualidade possível, evitando reflexos e distorções, para facilitar o trabalho de edição final.

A terceira etapa foi de tratamento das imagens. Embora todo o material estivesse em ótimas condições, era necessário corrigir detalhes como apagar alguns selos que estavam colados nas capas, remover ranhuras do papel e manchas do tempo. Lembro que tomei o cuidado para manter algumas características de textura especialmente das capas dos vinis, para passar a impressão de algo que foi “restaurado” e não “refeito”, um certo preciosismo para aqueles que cultuam o objeto físico. Mais alguns dias de dedicação e o trabalho estava pronto.









Mas ainda tínhamos uma questão especial para resolver. O Nelson e o Luciano decidiram lançar o álbum inédito Umbigos Modernos, que deveria ter sido lançado em 1988 mas não foi. O Nelson ainda tinha a fita da gravação original e esse material foi enviado para o Marcos Abreu, que trabalhou brilhantemente na restauração e na masterização para publicação em formato digital. Não havia materiais visuais criados para o álbum que não foi lançado em 1988, de forma que se tornou necessário criar algo novo. Pensei em alguns caminhos, como procurar uma fotografia do Nelson nos idos daqueles anos, ou então construir uma ilustração que remetesse ao conteúdo das letras. Mas aí me deparei com essa imagem da silhueta do Nelson publicada despretensiosamente em sua rede de instagram, capturada por Clau Mendonça em uma brincadeira, com uma cortina em contraluz. Tínhamos a imagem que queríamos!



O material todo entrou para a rede em 16 de abril de 2021, tudo junto e de uma só vez, na véspera de aniversário do Nelson. Como um presente de aniversário para si mesmo, o Nelson quis presentear o seu público com toda sua obra. De lá para cá, tenho recebido muitos agradecimentos e me deparado com muitos comentários a respeito da importância da disponibilização da obra de Nelson para o cenário musical. Nelson tem um público que estava ávido por um reencontro com músicas que fizeram parte da história de suas vidas. Assim como museus e espaços expositivos cuidam de uma obra de arte para que ela seja preservada e esteja acessível para futuras gerações, ter a obra de Nelson Coelho de Castro organizada e publicada em formato digital abre caminho para a continuidade de sua trajetória, que agora pode chegar também ao pessoal da minha geração e aos ouvidos dos filhos e netos do público que acompanha Nelson desde os finais dos anos 70. Esse é só o começo de uma nova história, algo me diz que teremos ainda muitos lançamentos pela frente.


Patrick Tedesco é Artista Plástico e Fotógrafo, com formação em Psicologia (UCPEL) e Design Digital (UFPEL), Especialista em Artes Visuais (UFPEL) e Mestre em Literatura Comparada (UFPEL).  Ministra aulas sobre capas de álbuns para o Ciclo do Disco. Diretor de arte e Capista da Agência CKCO.  Vive entre Pelotas (Brasil) e Braga (Portugal). Participa de exposições de obras pluridisciplinares, entre fotografias, esculturas, videoartes e execução de performances. Contato através do Instagram: @patricktedesco

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