Ensaio

Elis Nara Rita

Change Size Text
Elis Nara Rita Elis, a Pimentinha (Foto: Juarez Fonseca)

Antes dos anos 1970, a circulação de shows pelo Brasil era restrita às ocasiões especiais. Por exemplo, nos anos 1950, os programas de auditório das rádios Gaúcha e Farroupilha traziam normalmente cantores do Centro do País. Lá por 1958/59, em um sábado à tarde, levado por minha avó Ernestina (que eu chamava de Ló desde que comecei a falar), assisti ao Programa Maurício Sobrinho em que se apresentaram Gilberto Alves e Linda Baptista. Era um aniversário do programa, teve bolo distribuído ao público do auditório, na rua Siqueira Campos. A Ló pegou o autógrafo de Maurício no pratinho de papelão em que comemos a fatia de bolo. Depois, no largo ao lado da prefeitura, Linda Baptista foi colocada em um estrado para distribuir autógrafos à multidão aglomerada em volta. Durante décadas, essas duas lembranças foram mantidas nos guardados da Ló. Não sei em que momento se perderam.

Os clubes de Porto Alegre também traziam artistas de renome como atrações especiais de seus grandes bailes. Lá pelas tantas paravam as danças, o artista fazia o show, e seguia o baile depois. Foram célebres nos anos 1960 os bailes no salão de festas da Reitoria da UFRGS, animados por Norberto Baldauf, Renato e Seu Conjunto, o Flamboyant, o Flamingo. Realizado lá, o Baile dos Calouros era ponto alto na programação, com a escolha da Rainha dos Calouros (concorriam representantes de todas as faculdades), ingressos disputadíssimos. Em 1967, quando entrei na Universidade, o Baile dos Calouros teve show de Chico Buarque de Hollanda, que recém havia explodido nas paradas com A Banda. No ano seguinte, já na condição de chefe da Comissão de Calouros (vê só que coisa importante), escolhi Edu Lobo, que também estava no auge do sucesso, para fazer o show especial no baile. Chico, Edu, era o tempo dos festivais na TV.

O DAFA, Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, tinha uma agitação cultural diferenciada. Era liderado por grupos de esquerda, como também os centros acadêmicos das faculdades de Direito, de Medicina e de Filosofia, Ciências e Letras. E já promovia, desde 1965, os ArquiSamba, festivais com atrações nacionais realizados em locais como o Salão de Atos da UFRGS e o Cine Teatro Cacique. Passaram por esses palcos Baden Powell, Tamba Trio, Sidney Miller, MPB4, Sylvia Telles, Edu Lobo, Nara Leão, Chico Buarque, Gal Costa, Os Mutantes – dentro da capa do primeiro disco dos Mutantes guardo ainda os autógrafos de Rita, Arnaldo e Sérgio. Em 1968 e 1969 o DAFA realizou o Festival Universitário da MPB, que agitou Porto Alegre – e, de certa forma, deu o start para a agitação musical que tomaria conta da cidade a partir da segunda metade dos 70. Comentei o festival de 69 no Coruja, o jornal da Filô, destacando a vitória de Carlinhos Hartlieb com a música Por Favor, Sucesso, defendida por ele e a banda de rock Liverpool. 

Já se viu que não falei em teatros, até aqui. O São Pedro foi fechado em 1973 pelo desleixo estatal e os cupins (reabriria, totalmente reformado, em 1984). Restava o Salão de Atos, que não era um espaço para atividades empresariais. Inaugurado em 1964, com o musical My Fair Lady, estrelado por Bibi Ferreira, o belíssimo Teatro Leopoldina se dedicava até então ao teatro propriamente dito. Trouxe, em 1966, o musical Opinião, de Augusto Boal, com Maria Bethânia, Zé Keti e João do Vale. E, em 1968, Roda Viva, de Chico Buarque e Zé Celso Martinez Corrêa. 

Assisti a Opinião, não consegui assistir a Roda Viva, pois foi tirado de cena um dia depois da estreia devido a atos terroristas do CCC, Comando de Caça aos Comunistas. É oportuno lembrar: no dia da estreia, militares à paisana distribuíram panfletos com este texto: “Hoje preservaremos as instalações do teatro e a integridade física dos atores e da plateia. Amanhã, não”. No outro dia, as paredes do teatro, na rua João Teles, amanheceram pichadas com frases ameaçadoras assinadas pela sigla CCC. Na saída da cidade, pela Rodoviária, atores e técnicos da peça foram agredidos, com alguns sequestrados e torturados psicologicamente.

Mas o Leopoldina seria fundamental para colocar Porto Alegre na rota dos grandes shows nacionais e internacionais, que se popularizariam a partir dos anos 1970. Só dois exemplos: foram lá todas as apresentações de Astor Pizzolla em Porto Alegre e a temporada do primeiro show de Gilberto Gil na cidade, o de lançamento do disco Expresso 2222, que marcou sua volta do exílio, em 1972. Cinco dias em cartaz. Depois de um deles, “sequestrei” Gil e o levei para meu apê na rua Riachuelo, onde fiz a primeira grande entrevista com um músico brasileiro, regada a banchá e um vinho branco alemão.

Naquela época, chegar perto de um artista famoso não tinha maiores complicadores. Tanto, que Gil entrou em meu Fusca sozinho com sua bolsa de couro a tiracolo recheada por uma garrafinha de banchá e biscoitos macrobióticos. E eu não me valia do nome de Zero Hora, onde já trabalhava – a entrevista seria para o Exemplar, jornal do Clube do Professor Gaúcho, que eu editava. Abrimos quatro páginas para ela, usando o duplo sentido de uma frase de Gil como título: “Xaxado não é baião, cê tá entendendo?” Bueno, entrevistei a maioria dos artistas da música que se apresentaram no Leopoldina ao longo do tempo

Em 1973 perdi a movimentação que crescia, como os shows do Creedence Clearwater Revival no Leopoldina e do fenômeno Secos & Molhados no Gigantinho. Gigantinho! O ginásio do Inter, que seria o mais importante palco dos grandes shows internacionais pelos anos à frente, foi inaugurado em 1973. Eu e Sônia passamos esse ano inteiro na Europa.

Na volta, a coisa estava a mil! E segui entrevistando todo mundo.  Não só os novos artistas gaúchos como os que vinham a Porto Alegre e os que, a convite de gravadoras, eu encontrava no Rio e em São Paulo.

Fiz mais de 100 entrevistas com quase todos os grandes nomes que você pode imaginar, de Tom Jobim a Tom Zé, passando por Luiz Gonzaga, Paixão Côrtes, Raul Seixas, Caetano, Tonico e Tinoco, Carlinhos Hartlieb, Hermes Aquino…  Exceto João Gilberto e Vinicius de Moraes. João, porque ele não dava entrevistas para ninguém; Vinicius, porque nos tempos pós-bossa nova eu alimentei um certo preconceito com sua “fase popular” ao lado de Toquinho – olha o tamanho da minha ignorância! Vale lembrar que a dupla chegou a fazer show no Gigantinho, Vinicius no meio do palco sentado em uma mesinha de bar com a garrafa de uísque, o copo, o balde de gelo e o microfone. Amei a Arca de Noé, um dos mais belos discos para crianças já feito no Brasil, mas logo depois ele morreria, e nunca mais! Até hoje me cobro por isso; seria maravilhoso ter conversado com o letrista-símbolo da bossa nova – o que dependeria apenas de minha disposição e ação.

Escrevi tudo isso para chegar às fotos que ilustram este texto, de minhas três cantoras preferidas: Elis Regina, Nara Leão e Rita Lee. Por coincidência, as duas primeiras foram ligadas a Vinicius. Nara começou profissionalmente no musical bossa-novista Pobre Menina Rica, de Vinicius e Carlos Lyra, produzido em 1963. Mais tarde, ganhou dele a letra do clássico Odeon, de Ernesto Nazareth, que gravou em seu disco tropicalista (1968). Elis foi catapultada para o sucesso nacional ao vencer em 1965 o 1º Festival da Música Popular Brasileira com Arrastão, parceria de Vinicius com o estreante Edu Lobo. E foi o Poetinha quem deu a ela o apelido de Pimentinha. Quanto a Rita Lee, é até hoje a única cantora a lotar o Gigantinho – mais de uma vez.

Dizem que Elis e Nara não se bicavam, talvez mais por conta do temperamento da gaúcha, pois a outra era low profile total. Mas antes de qualquer diferença futura, no disco ao vivo Dois na Bossa (1965) feito com Jair Rodrigues, Elis a homenageou, mudando a letra de um samba de Zé Keti que a carioca cantara no musical Opinião: “Acender as velas, já é profissão/ Quando não sou eu, é Nara Leão”. Acaso estranho: Elis morreu no dia do aniversário de Nara, 19 de janeiro. Quanto a Elis e Rita, eram unha e carne, se chamavam de “comadre”, ambas tinham casa de veraneio na Serra da Cantareira. Alô, Alô Marciano, um dos grandes sucessos de Elis, foi presente da amiga.

Minha primeira entrevista com Elis foi em 1974, quando fez temporada no Teatro Leopoldina – ano do lançamento de Elis & Tom e de um de seus discos que mais gosto, aquele que tem Saudades dos Aviões da Panair. Saiu em duas páginas do caderno Guia, de Zero Hora, que circulava aos sábados. Título: “Eu tô legal”. Contei pra ela o que sua voz significava para mim, que a acompanhava desde a adolescência no programa Clube do Guri, da Rádio Farroupilha. Era um ano e pouco mais velha que eu. A partir daí, estive com ela todas as vezes em que veio a Porto Alegre, até a última – outubro de 1981, no Gigantinho. Foram muitas entrevistas e conversas, comentei todos os discos e shows. Numa das vezes estava amarga, tensa. Lembrei a ela o título da primeira entrevista. Respondeu: o título desta agora pode ser “não tô legal”.

Mas o que de fato une estas fotografias é o ano em que foram feitas: 1978. E que elas posaram para mim. 

Elis chegou para a estreia nacional em Porto Alegre do show Transversal do Tempo, dirigido por Aldir Blanc, que sucedia o mega-sucesso Falso Brilhante. Me chamou para assistir aos ensaios. Duas semanas em cartaz. No dia em que fui entrevistá-la, no Hotel Plaza (o Plazinha), desceu comigo até o saguão para que eu fizesse as fotos. Deixou que eu me divertisse clicando enquanto mudava as expressões, sentada na mesinha do abajur. Ao lado dela estava um maço de cigarros Charm, mas não fumou enquanto fotografávamos. Depois César Camargo Mariano desceu do apartamento e fomos fazer fotos na rua, ela na garupa da moto do pai de Pedro e Maria Rita.Com Rita Lee foi a primeira entrevista. Eu sabia tudo dela desde que Os Mutantes acompanharam Gilberto Gil em Domingo no Parque, o lançamento da Tropicália no Festival da Record em 1967, ao lado de Alegria, Alegria, de Caetano. Percebendo isso ela se sentiu à vontade, fazendo caras e bocas para a câmera Minolta que me acompanhava sempre.

Título da entrevista, também publicada em duas páginas na Revista ZH: “Eu adoro o deboche, que é a linguagem do jovem”. 

Entrevistei Rita outras três vezes, uma delas antes do show que lotou o Gigantinho, se não me falha a memória em 1987, em que durante a música Miss Brasil 2000 Adriana Calcanhotto subiu ao palco envolta em uma gabardine que, surpreendentemente, abriu e fechou, revelando nudez total, de frente, durante segundos. Um único fotógrafo conseguiu o flagrante, meu amigo Marcelo Ruschel, que em 1985 estivera comigo no Rock in Rio e me passou a foto. Mas sei que Adriana me odiaria para sempre, talvez me processasse se eu a publicasse. Jamais correria esse risco.

Nara também foi a primeira vez. Claro que eu babava diante dela, não era apenas uma artista, era um mito. Cheguei ao hotel com o gravador e ela logo quebrou qualquer distância, dizendo que o pessoal da gravadora falara bem de mim e que tinha lido e gostara de meu comentário sobre seu novo disco, Meus Amigos São um Barato, em que canta Tom, Caetano, Chico, Gil, Erasmo, Menescal, Dominguinhos… Título da entrevista, que antecipa o teor do todo: “Estou começando vagamente a achar que pode ser que eu vire uma cantora”. 

Perguntei: “O que você acha desse novo público que está se formando no Brasil, que lota teatros para ver Milton Nascimento, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti?”. Início da resposta: “Por que está acontecendo isso eu não sei, mas é uma boa surpresa”.  

Ela era irresistível. Ficamos amigos de infância. Comentei que estava indo para o Rio e que queria conversar com Chico Buarque, naqueles dias envolvido com a encenação d’A Ópera do Malandro. “Faço um bilhete pra Marieta” (Severo, mulher de Chico), me disse. “Chega lá no teatro e pede pra falar com ela”. Texto do bilhete, manuscrito em uma lauda do jornal (e que, claro, guardo comigo): “Marieta, o Juarez é um amigo de Porto Alegre que quer falar com o Chico. Vê o que você pode fazer por ele”. Resumo: cheguei ao Teatro João Caetano mas não precisei passar o bilhete para Marieta, pois Chico me recebeu – e fiz a primeira entrevista com ele.

Depois do segundo encontro, e outra entrevista longa, ela sentiu mais confiança. Sabendo que eu ia com certa frequência ao Rio, viagens em maioria bancadas pelas gravadoras e ligadas a lançamentos de discos, me deu seu telefone e endereço. “Quando for, apareça lá em casa”. E eu apareci. Não lembro do endereço. Lembro que no apartamento estavam um menino e uma menina, seus filhos com Cacá Diegues, que ela trouxe cafezinhos, que ficamos conversando sobre música e família (eu já era pai de Lis), e que me deu algumas dicas do Rio. Fui vê-la pela quarta e última vez numa Festa do Disco no Hotel Laje de Pedra, em Canela, acho que em 1983/84.  Sentamos os dois em um banco de praça com o Vale do Quilombo ao fundo e ficamos jogando conversa fora sobre e vida e a música brasileira. 

Elis e Nara não souberam o que é ser avó. Vovó Rita vai bem, obrigado.


Juarez Fonseca é jornalista cultural, especialmente dedicado ao universo da música popular, em atuação desde 1970. Atualmente, prepara a publicação de uma coletânea de suas entrevistas. 

ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1
ASSINE O PLANO ANUAL E GANHE UM EXEMPLAR DA PARÊNTESE TRI 1

Esqueceu sua senha?

ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.
ASSINE E GANHE UMA EDIÇÃO HISTÓRICA DA REVISTA PARÊNTESE.