Ensaio

Em busca de Apolinário Porto Alegre (parte II)

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Em busca de Apolinário Porto Alegre (parte II) O ambiente à direita e seus quadros. Foto do autor.

Nos dias que se passaram, muito pensei em Apolinário. Sem a mínima sombra de dúvida ele havia sido um homem ímpar em seu meio. Na primeira edição da Revista do Partenon Literário, aventurou-se em um romance histórico, Os Palmares, retratando o famoso quilombo brasileiro. No mesmo volume, publicou Mandinga, uma pequena narrativa que se passava na área rural de Porto Alegre, retratando os trabalhadores em uma moenda de mandioca. Nestas duas histórias já estava presente a sua preocupação em retratar as pessoas simples, enfocando a rotina, o vocabulário e os costumes da gente humilde. Sua atuação também foi política. Ainda em 1868 fundou o Clube 20 de Setembro, que foi a primeira agremiação a defender publicamente os ideários republicanos no Rio Grande do Sul. Apolinário enxergava na Revolução Farroupilha um modelo ideal das suas aspirações reformistas. Dessa forma, resgatou o quanto pôde o legado dos farroupilhas como elemento fundamental para a defesa da República e acabou por ser um dos responsáveis pela construção da mitologia idealizada em torno do conflito.

Em 1870 publicou na revista Murmúrios do Guaíba – formada a partir de uma cisão no grupo do Partenon Literário – o conto O Monarca das Coxilhas. O protagonista Sancho Escafuza é um perfeito guasca: solitário, bom montador de cavalo, corajoso e errante. No entanto o seu mais ambicioso projeto literário seria, sem dúvida, a publicação de O Vaqueano, na Revista do Partenon Literário, em 1870. Trata-se de uma narrativa romântica, mas que tinha como o objetivo representar o tipo caudilho de uma maneira mais próxima da realidade, em oposição aos idealismos e artificialismos de O Gaúcho, de José de Alencar. Foi a primeira vez que a Revolução Farroupilha e seus líderes foram retratados de forma positiva na ficção. 

No mesmo ano fundou com o irmão Apeles Porto Alegre e o amigo Vasco de Araújo e Silva o Colégio Rio-Grandense. Alguns anos depois ainda fundaria o Instituto Brasileiro, uma instituição de ensino que se destacou pelo currículo diversificado e pela ausência do castigo físico. Também foi um dos precursores da crítica literária no Rio Grande do Sul e escreveu inúmeras peças de teatro e vários livros de poesia. Em 1878 participou do Clube Republicano e em 1880 foi o redator do jornal Imprensa, o primeiro periódico republicano diário. Há, além disso, uma grande quantidade de outros textos publicados de forma esparsa na Revista do Partenon Literário. Pode-se ver, por meio dos seus inúmeros campos de atuação, a inquietação que é própria das mentes muito criativas. 

Na terça-feira da outra semana, lá estava eu novamente na Clínica Dr. Porto Alegre. Sentei-me mais uma vez na sala e esperei pelo médico, que surgiu logo em seguida. Um senhor grisalho, de avental e máscara. Agradeci imensamente por ter me recebido e expliquei por que eu estava ali. 

    – Então tu sabe bem quem foi o Apolinário? – perguntou-me feliz.

    – Sim – respondi orgulhoso.

Perguntei-lhe sobre a história da casa. Ele não sabia precisar a data da construção, mas sua mãe a havia adquirido do advogado José Maria Pombo Dornelles há uns 50 anos. Desde então ela havia passado por inúmeras reformas até chegar a ser transformada em clínica médica. Disse a ele que o lugar era muito bonito, mas o que de fato mais havia me chamado a atenção era aquela sala em que estávamos. Ele olhou para os quadros e me disse que eram obra de sua esposa.

    – Já chegaram a pagar 3 mil reais por eles, mas atualmente ela não pinta mais – completou o médico. 

Em seguida ele me apontou para o cofre e disse que o objeto havia pertencido ao jornalista Breno Caldas, mas não se lembrava de como havia chegado à sua família. Observamos em silêncio a sala por alguns instantes. 

    – Qual o seu parentesco com Apolinário Porto Alegre? – perguntei. 

    – Sou bisneto dele – respondeu o doutor. 

A seguir, traçou uma árvore genealógica da família. Seu nome completo era Álvaro Porto Alegre Furtado. Tinha 75 anos. Sua mãe era filha de Victória Anderson e de Araci Porto Alegre, que era filho de Apolinário Porto Alegre. Além de Araci, o escritor gaúcho havia tido outros sete filhos. Neste ponto, falo sobre o terrível ano de 1890, em que Apolinário perdeu, no intervalo de quatro meses, sua primogênita América, de apenas 12 anos, e sua mulher Elisa, de 37. 

    – Depois disso, ele se isolou cada vez mais na Casa Branca. Foi um período de muita tristeza para ele – disse-me o doutor. 

    – E por isso ele ficou conhecido como o “solitário da Casa Branca”, completei.    

Conto a ele o que eu sabia sobre o local. Tratava-se de uma construção residencial branca em estilo açoriano, que ficava localizada onde hoje é a praça Marcos Rubin, na Protásio Alves, quase esquina com a Antônio de Carvalho. A casa foi construída no início do século XIX. Durante a Revolução Farroupilha, serviu como quartel-general dos farrapos no cerco a Porto Alegre e em 1836 foi utilizada como hospital de campanha. Bento Gonçalves e Garibaldi frequentaram o local. Seu morador mais ilustre foi justamente Apolinário Porto Alegre. 

Ali ele cultivou um imenso orquidário, criou animais e manteve uma vasta biblioteca, de aproximadamente 4 mil volumes. Muitos intelectuais da época frequentaram a Casa Branca. Foi então que veio a desavença com Júlio de Castilhos. Embora Apolinário estivesse presente na convenção que inaugurou o Partido Republicano Rio-Grandense em 1882, logo se afastou da legenda, por discordar da ideia de uma ditadura científica positivista e por defender a tese de que na República deveria haver a abolição imediata da escravidão. Júlio de Castilhos, por sua vez, queria que o processo fosse gradual e com indenização aos proprietários. No primeiro congresso do PRR, o autor conseguiu revogar a tese de Castilhos e recebeu apoio para a abolição imediata e sem indenização. 

Em 1892, já abolida a escravidão e instalada a república, após um contragolpe de Júlio de Castilhos em opositores (em 93 estouraria a chamada Revolução Federalista, uma guerra civil de dois anos de duração), Apolinário foi preso e logo em seguida libertado. As perseguições castilhistas se intensificam ao ponto de o autor precisar se esconder com a ajuda do irmão Apeles e de um amigo. Acabou por se refugiar em Laguna e depois em Montevidéu. Neste período, sua residência foi invadida e saqueada. Vários originais foram destruídos, assim como o seu acervo de alguns milhares de livros. Além disso, os castilhistas pintaram os cavalos de Apolinário com piche, destruíram o seu pomar e mataram outros de seus animais. Somente em 1895 o autor conseguiu voltar à sua residência. 

O doutor olhava para os quadros de sua mulher na parede e permaneceu em silêncio durante alguns instantes. Mesmo depois de tanto tempo, ainda havia ressentimento pelo acontecido. Eu continuei.

No final dos anos 1960, o comerciante Marcos Rubin adquiriu o local, com o intuito de utilizar a área para fazer um loteamento. Era necessário, claro, que a casa fosse demolida. A imprensa e Leandro Telles, presidente da comissão de constituição do Patrimônio Histórico de Porto Alegre, fizeram todo o possível para que a construção permanecesse de pé. Para tanto, em 1972 foi “declarada de utilidade pública, por ser necessária a implantação de um parque histórico”, que se chamaria Parque Histórico dos Farrapos. No entanto, Marcos Rubin alegou em jornais da época que comprou a residência em 1968, data anterior ao decreto. Dessa forma, a casa foi demolida sem deixar nenhum vestígio. Ironicamente, o local em que ficava a Casa Branca ganhou uma estátua em homenagem a Marcos Rubin. A área exata onde ficava a residência deu lugar a uma praça em torno da qual foram construídos inúmeros prédios residenciais. 

A Casa Branca. Fonte: arquivo pessoal

A especulação imobiliária geralmente não reconhece legitimidade ao patrimônio físico. Trata-o como um empecilho ao progresso e, por consequência, ao lucro. Dessa forma, estar naquela tarde, naquela clínica médica, conversando com um descendente de Apolinário Porto Alegre, tinha algo de um ato de resistência simbólica.  

Eu disse ao médico que deve ter sido naquela casinha branca que boa parte do Popularium Sul-Riograndense foi escrito. Ele me acenou positivamente, em sinal de concordância. Levantei-me, caminhei até o cofre e peguei o exemplar da obra, que ainda estava do mesmo jeito que eu havia deixado na semana anterior. Voltei à poltrona e comecei a folheá-lo. 

É uma obra impressionante, por qualquer ângulo de observação. Trata-se da explicação de inúmeros elementos culturais da realidade gaúcha. Ali havia filologia, folclore, provérbios, adivinhações, culinária etc. Ao realizar tal empreitada, Apolinário Porto Alegre estava tentando inserir os estudos sobre a nascente cultura regional gaúcha no hall das ciências positivas do final do século 19, na medida que seu intuito era, à luz da racionalidade, explicar os mais diversos fenômenos culturais do Rio Grande do Sul. O autor, por exemplo, estudou as contribuições que os escravizados africanos haviam trazido de seus países, e as elencou em um capítulo chamado “elementos bantôs”. Nele, constam também letras de lundus, que ele descreve como uma “dança chula do Brasil, em que as dançarinas agitam indecentemente os quadris”. 

 Seu interesse pela cultura popular no contexto do século 19 não era pouca coisa. Em uma época em que a norma culta imperava na literatura, Apolinário foi encontrar no cotidiano tão distante das agremiações literárias o seu material de pesquisa. Ele encontrou inspiração para suas arqueologias linguísticas justamente na região da Casa Branca, que à época era um local muito retirado da cidade. No entanto sua curiosidade vinha já de muitos anos. Em 1866, quando Apolinário tinha apenas 22 anos, teria acontecido um momento epifânico, que nos é narrado por meio de seu discípulo Augusto Daisson: “Numa faina de farinhada, um peão, rusgando com outro que apertava os tipitins na prensa, teve forte pendência em que me foi preciso intervir. Dizia-me ele no auge da cólera: – Veiu-me com pabulagens de pongó, ou caborteiro, umas coisas de bambaé… Ante a parlenda do meu patrício, que durante um bom quarto de hora esbofou uma linguagem completamente alheia para mim, fiquei estatelado. (…) Era ele brasileiro e eu um manequim da Europa, deslocado no meio em que nasci, onde vivia e respirava, apesar de conhecer várias línguas, história, filosofia e quejandas matérias.” Impressionante a consciência de que suas ideias eram importadas da Europa e soavam menos autênticas quando confrontadas com o saber linguístico das camadas mais populares da sociedade gaúcha.

O Popularium em sua segunda edição ampliada. Foto do autor.

O trajeto que os estudos de Apolinário fizeram até chegar às minhas mãos em forma de livro naquela tarde de 2020 não havia sido dos mais fáceis. Boa parte de seus manuscritos havia sido destruída na invasão dos castilhistas à Casa Branca. Após a morte do autor, seu filho Álvaro Porto Alegre conseguiu resgatar os originais no Rio de Janeiro, local em que os textos se encontravam em virtude de uma promessa de publicação nunca cumprida. O material permaneceu guardado durante muitas décadas, até que o professor e pesquisador Lothar Francisco Hessel, com apoio do Instituto Estadual do Livro e da UFRGS, conseguiu lograr êxito na publicação, não sem antes percorrer um imenso caminho na busca e preparação dos originais. Dessa forma, a obra foi publicada pela primeira vez somente em 1981, mais de um século após ter sido escrito.  

    – É, de fato, um livro muito importante – disse-me o bisneto de Apolinário.

Ficamos mais uma vez em silêncio. Eu observava o doutor. Ali estava ela, a memória, que se revelava por meio de um oscilar inquieto de olhos, que com marcado interesse tentava catar grãos de lembranças.


Cristiano Fretta é mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor nos colégios Santa Inês e Santa Dorotéia. Autor de Chão de Areia (romance, editora Multifoco, 2015) e Tortos Caminhos (novelas, editora Multifoco, 2017), músico amador, desde sempre é morador da Zona Norte e pesquisador da história da região.

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